A história mal contada de Yeonmi Park
Em 2014, durante a conferência "Um Mundo Jovem", sediada em Dublin, na Irlanda, a ativista Yeonmi Park comoveu o mundo ao narrar episódios da sua vida antes de fugir da Coreia do Norte, levando jornalistas, ativistas dos direitos humanos e o público em geral às lágrimas. O vídeo com o relato de Park no YouTube, visualizado por dezenas de milhões de pessoas, popularizou a história no mundo inteiro, graças aos testemunhos pungentes sobre o sofrimento infligido à sua família após a prisão de seu pai, acusado de contrabando pelo governo norte-coreano. Lavagem cerebral, execuções públicas de dissidentes por motivos banais, estupro, perversidades e abusos permeiam a narrativa de Park sobre a vida na Coreia do Norte - um sofrimento que, segundo a ativista, só teria cessado após a família conseguir escapar do país, estabelecendo-se na vizinha Coreia do Sul.
Não demorou para que Yeonmi Park virasse uma celebridade e passasse a colher os frutos financeiros de sua colaboração com a imprensa, academia, organizações e governos ocidentais, provendo farto material para a vilanização do governo da Coreia do Norte, do qual se tornou uma das mais famosas opositoras. Sua autobiografia, traduzida para dezenas de idiomas e comercializada pelas principais editoras ocidentais, tornou-se um best-seller. Jornais como Washington Post e The Guardian lhe ofereceram farto espaço em suas colunas. Universidades e ONGs estadunidenses e europeias a tornaram uma figura carimbada em palestras e conferências sobre direitos humanos e relações internacionais. Na Coreia do Sul, lhe ofereceram até mesmo um programa de televisão, com um elenco inteiramente feminino, onde Park, apelidada de "Paris Hilton da Coreia do Norte", mescla amenidades com sátiras ácidas criticando a "dinastia Kim". A organização libertária Atlas Foundation, que financia think tanks de direita no mundo inteiro, passou a apoiá-la, bem como a ONG Freedom Factory, envolvida em controvérsias na Coreia do Sul. Park também criou sua própria fundação, sediada em Nova York.
O famoso adágio de Abraham Lincoln, entretanto, já vaticinava: "pode-se enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas durante o tempo todo, mas é impossível enganar todo mundo o tempo todo". À medida em que as conferências e palestras de Park se avolumavam, também cresciam as discrepâncias, incoerências e contradições, intrigando jornalistas, historiadores e analistas políticos. Os pesquisadores notavam que os detalhes das narrativas de Park eram modificados conforme o público-alvo, ao melhor estilo dos serviços "on demand".
Uma das histórias mais chocantes no repertório de Park assegura que, aos nove anos de idade, isso é, por volta do ano 2002, a ativista teria testemunhado a mãe de sua melhor amiga ser publicamente executada, em um estádio de Hyesan. Nas suas palestras professadas na Europa, Park afirmou que a pena de morte foi aplicada após a mulher ter sido flagrada assistindo um filme de James Bond ou, mais genericamente, "um filme de Hollywood". Mas, meses depois, ao contar a mesma história em Hong Kong, Park afirmou que a mãe de sua amiga havia sido condenada à morte por "assistir DVDs sul-coreanos". A cronologia não bate com os registros oficiais, que situam as últimas execuções na cidade de Hyesan no ano de 1999. Também são contestadas pelos relatos de outros desertores norte-coreanos, que negam ter havido tal execução pública em 2002. Andrei Lankov, professor da Universidade Kookmin em Seul, considera "muito improvável" que assistir a um filme estadunidense ou sul-coreano resultaria numa prisão, que dirá numa execução - geralmente reservada para crimes muito graves, como assassinato ou tráfico de pessoas. Outros desertores norte-coreanos entrevistados pela jornalista australiana Mary Ann Jolley em 2014 também afirmaram que a ideia de que norte-coreanos são executados por assistir filmes estrangeiros é absurda.
Divergências também foram notadas nos relatos de Park sobre a condenação de seu pai. Inicialmente, Park alegava que seu pai havia sido condenado a 18 anos de prisão. Sua mãe, entretanto, em outra entrevista, afirmou que seu marido havia sido condenado a apenas um ano de cárcere. Em uma segunda oportunidade, a mãe de Park aumentou a sentença para 10 anos. Park também havia alegado que sua mãe ficara detida por seis meses e tinha sido proibida de deixar sua cidade por tempo indefinido. Não obstante, a mãe de Park afirmou que não foi presa, mas meramente interrogada intermitentemente durante um ano, "às vezes em sua casa em Hyesan, às vezes em outras cidades". Os testemunhos de Park e de sua mãe também entram em contradição em relação à suposta crise famélica que a ativista alega ter enfrentado. Park disse que durante sua infância passou muita fome e precisou se alimentar de grama e de insetos, principalmente libélulas, e que via constantemente cadáveres de pessoas que haviam morrido de fome largados na rua. Mas quando sua mãe foi questionada em um programa de TV sul-coreano sobre ter passado fome na Coreia do Norte, afirmou peremptoriamente que "isso nunca ocorreu", que a família "nunca esteve numa condição de passar fome" e que essa crise famélica não teria sido registrada na cidade onde viviam. O relato também contrasta com outras palestras de Park, onde ela diz que sua família tinha boas condições de vida na coreia do Norte e que sua mãe usava roupas e acessórios de marcas de luxo, como Prada ou Chanel.
Ao contar a história de sua fuga da Coreia do Norte, Park afirmou, em diversas ocasiões, ter cruzado três ou quatro montanhas durante a noite para chegar até a fronteira e descreveu com riqueza de detalhes a dor que sentia em seus pés. Entretanto, Hyesan, local onde Park morava, é uma localidade plana, sem montanhas para atravessar. Ao conversar com uma rádio de São Francisco, Park disse que escapou da Coreia do Norte junto com seu pai e sua mãe. Mas ao contar a mesma história na conferência de Dublin, afirmou que escapou apenas com sua mãe, que teria sido estuprada durante a fuga. Há também contradições na história do enterro do seu pai. Park inicialmente alegava que teria sepultado sozinha o corpo do seu pai ao 14 anos de idade, em uma montanha na China. Mas para outros jornalistas, Park afirmou que seu pai teria sido cremado - e não enterrado. Sua alegação de que teria sido abusada junto com outras prisioneiras em um centro de detenção da Mongólia também não foi sustentada por testemunhas que estiveram detidas junto com ela.
As inconsistências de Park provocaram irritação entre os próprios desertores norte-coreanos, receosos de que exagero das histórias e a fabricação de narrativas afete negativamente a credibilidade da comunidade. Contestada sobre essas inconsistências, Park alegou que se confundiu em função das barreiras linguísticas, ou que as contradições derivariam de lapsos de memória. A explicação mais razoável, entretanto, é a de que Park seja mais uma desertora cooptada pelos aparelhos ideológicos ocidentais para atuar a serviço da agenda de satanização da Coreia do Norte em troca de muito dinheiro, incrementando as narrativas exóticas bizarras sobre execuções de oficiais por armas antiaéreas, limitações de corte de cabelo, opositores políticos comidos por cachorros e militares assassinados que ressuscitam semanas após terem a morte decretada, todas veiculadas de forma acrítica como verdades absolutas pela imprensa ocidental.
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