Espírito natalino


Já virou tradição. Aproveitando-se da breve e hipócrita distensão das tensões sociais durante as festas de fim de ano - o encosto artificialmente construído que batizaram de "espírito natalino" - , a mídia brasileira bombardeia a população com suas matérias piegas que reforçam hierarquias sociais e sensos comuns disfarçadas de histórias bonitas sobre empatia e solidariedade.

São comuns as matérias romantizando sofrimento e naturalizando a injustiça social sob a alegada pretensão de exaltar a "perseverança" e a "resiliência" do povo brasileiro - bem como reportagens mostrando a miséria em sua faceta mais cruel, para que a classe média se sinta privilegiada por não ser pobre e para que os pobres sintam-se privilegiados por não serem indigentes. Não obstante, as matérias sobre a "honestidade" dos pobres são as favoritas da mídia nessa época do ano.

Invariavelmente, haverá uma matéria mostrando um pobre que devolveu uma quantia absurda de dinheiro para um empresário. Há sempre um foco na ocupação, com predileção por garis, serventes e faxineiras, de preferência desempregados. Eventualmente o "pobre honesto" é um morador de rua, para deleite absoluto da imprensa. Frisa-se à exaustação as eventuais dificuldades do "pobre honesto". Mora em favela, está com a luz cortada, tem um filho doente e não tem dinheiro para comprar remédio. Mas, mesmo assim, "não teve coragem" de "ficar com o dinheiro dos outros". O "pobre honesto" é transformado em modelo, recompensado com elogios em rede nacional e parabenizado por "fazer o certo": devolver uma maleta com 100 mil ou 200 mil reais para algum empresário "distraído". O empresário nunca aparece na televisão, nem tem o nome divulgado. Tampouco se questiona o que ele fazia andando por aí com 100 mil ou 200 mil em uma maleta e em que tipo de transação esse dinheiro seria aplicado. Afinal, para que estragar matérias tão bonitas com questionamentos bobos? O importante é difundir em rede nacional a mensagem, a "moral da história". "Ainda existem pobres honestos no Brasil. Inspirem-se neles".

"Dicas de economia financeira" também são outra tradição da mídia nacional. Tão logo os trabalhadores celetistas começam a receber o 13º salário, pipocam na imprensa as matérias sugerindo como gastar o dinheiro. Há pouca margem para criatividade e o telespectador não receberá conselhos como "tire férias" ou "faça uma viagem". A imensa maioria das matérias tentarão persuadir o público a "pagar as dívidas", "limpar o seu nome", "tirar o seu nome do cadastro de devedores".

A pregação moralista da imprensa parece seguir a lógica de um velho ditado popular: "faça o que eu digo, não faça o que eu faço". Entra ano, sai ano, as empresas do setor mantém a tradição de dar sucessivos calotes no fisco e na previdência, gerando dívidas multimilionárias, apoiadas na certeza de que, eventualmente, tais montantes serão perdoados por algum governo sedento por cobertura jornalística condescendente. Afinal, no Brasil, a certeza da aplicação da lei é inversamente proporcional ao tamanho do patrimônio e ao saldo da conta bancária. Consciência pesada, perder o sono por causa de dívidas e preocupação com a honestidade por essas bandas sempre foram "coisa de pobre".

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