Fome na Rússia
"A Grande Fome de 1601", gravura oitocentista retratando a crise famélica que devastou a Rússia no começo do século XVII. A cena mostra a população agonizando nas ruas de Moscou enquanto o pão é racionado pelas autoridades.
Crises famélicas sempre estiveram associadas à história da Rússia. Apesar do seu vasto território, as condições geográficas da Rússia não são muito favoráveis à prática agrícola, limitando enormemente as áreas de plantio. O clima severo e imprevisível do país, marcado simultaneamente por temperaturas frias e secas sazonais, também castigavam as safras e prejudicavam a regularidade das colheitas. Por fim, a histórica concentração das terras nas mãos de poucos proprietários, o sistema de cultivo utilizando o método do campo aberto e a baixa tecnologia empregada na produção também contribuíam enormemente para a ocorrência periódica de episódios severos de fome no país.
Os registros historiográficos mais antigos relatando crises famélicas na Rússia remontam à Baixa Idade Média. As Crônicas de Nikon, escritas entre 1127 e 1303, por exemplo, relatam a ocorrência de pelo menos 11 grandes fomes, que vitimaram milhares de pessoas. Outras centenas de milhares de russos pereceriam durante a Grande Fome de 1315–1317.
A Fome Russa de 1601-1603 foi a pior crise famélica da história do país, responsável por dizimar um terço de toda a população russa. Poucas décadas depois, o país seria atingido pela Fome de 1695-1697 que, novamente, matou parcela substancial da população.
A concentração fundiária após a criação do Império Russo agravou a situação, expondo até 80% da população russa à subnutrição. Do século XVIII até o início do século XX, a Rússia experimentava uma crise famélica, em média, a cada 10 ou 13 anos, não raramente agravadas por secas que, ocorriam, aproximadamente, de 7 em 7 anos. Duas das piores crises desse período foram a Fome de 1866-1868 e a Fome de 1891-1892. As duas crises vitimaram centenas de milhares de pessoas e estimularam o ressentimento popular contra o regime czarista, visto como omisso e indiferente ao sofrimento do povo.
Ainda no período pré-soviético a Rússia enfrentou novas crises famélicas em 1901 e 1911. As crises incentivaram o apoio popular aos movimentos anti-czaristas e marxistas que derrubariam a monarquia russa em 1917. Nas duas primeiras décadas após a Revolução de Outubro, a Rússia, agora parte integrante da União Soviética, ainda testemunharia duas grandes crises famélicas. A primeira foi a Fome de 1921-1922, que ocorreu em paralelo com a Guerra Civil Russa e atingiu o Vale do Volga e a região dos Montes Urais. A segunda foi a Fome de 1932-1933, que atingiu as regiões produtoras de cereais, como Ucrânia e Cazaquistão, vitimando 3 milhões de pessoas, acompanhada simultaneamente por uma epidemia de tifo.
A particularidade da Grande Fome de 1932-33 é o fato de que ela ocorreu quando os nazistas, arquirrivais do governo socialista russo, já haviam ascendido ao poder na Alemanha. Buscando tirar proveito da tragédia, Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, passou a responsabilizar o governo soviético pela crise famélica, alegando que Stalin teria causado propositalmente a fome com o objetivo deliberado de exterminar a população ucraniana. Através desses rumores, Goebbels pretendia incitar uma revolta dos ucranianos contra o governo soviético e desestabilizar a nação socialista. Em 1934, William Hearst, magnata da imprensa estadunidense, viajou para a Alemanha, onde se encontrou com Adolf Hitler, de quem era admirador declarado. Após ser informado sobre a campanha anticomunista em curso na Ucrânia, os jornais de Hearst, que já publicavam textos escritos por Hitler e Mussolini, passaram a divulgar matérias sobre o "Holodomor", o "genocídio por fome" causado por Stalin, popularizando a tese entre liberais, conservadores e anticomunistas - que até hoje a repetem, malgrado a ausência de quaisquer provas documentais que substanciem as alegações de que a fome foi criada propositalmente.
Embora muito criticadas, a coletivização e a reestruturação fundiária promovidas por Stalin, bem como a modernização das técnicas e práticas agrícolas estimuladas durante a sua gestão, foram responsáveis por encerrar a longa tradição de fome que sempre acompanhou a história da Rússia. A Fome de 1932-33, paradoxalmente a única da qual o ocidente hoje se recorda, foi justamente a última fome que matou pessoas em larga escala na Rússia.

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