O mito dos escravos de Zumbi e o anacronismo de Leandro Narloch

Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, é tradicionalmente considerado um dos pioneiros da resistência contra a escravidão no Brasil. A ele também são atribuídos outros nobres predicados, em especial o pioneirismo da luta pela liberdade de culto e religião no país. O dia de sua morte, 20 de novembro, é comemorado em todo o território brasileiro como Dia da Consciência Negra.

Não obstante, popularizou-se nos últimos anos, sobretudo nos ambientes virtuais, a crença de que a descrição historiográfica de Zumbi como um guerreiro que lutava contra a escravidão seria um "mito". É comum hoje em dia que as pessoas se deparem com comentários e textos que acusam Zumbi de ter sido um cruel escravizador e assassino. Esse revisionismo histórico é um fenômeno recente, iniciado no século XXI, a princípio como uma reação ao avanço de políticas focadas na população negra, em especial após a implementação das cotas raciais nas universidades públicas brasileiras.

A reescrita da história de Zumbi tem como ponto de partida o livro "Cidadania no Brasil", publicado por José Murilo de Carvalho em 2001. A essa obra, seguiu-se um artigo de Ricardo Ventura Santos publicado no livro "Divisões Perigosas", de 2007, que compilava textos contrários à promoção de políticas públicas baseadas em critérios raciais. O mais popular promotor desse revisionismo e principal difusor da teoria do Zumbi escravocrata, entretanto, é o livro "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", escrito por um jornalista ligado à direita política chamado Leandro Narloch.

Em geral, essas alegações são falsas, meramente especulativas e/ou comprovadamente anacrônicas. Em "Divisões Perigosas", José Murilo de Carvalho defende a existência de escravos no Quilombo dos Palmares com base na mera suposição de que os quilombolas provavelmente imitavam a estrutura socioeconômica do seu entorno - isso é, o Brasil escravagista. O autor, entretanto, não fundamenta sua alegação com base em evidências documentais. Já Ricardo Ventura Santos e Leandro Narloch utilizaram-se da mesma fonte para afirmar que Zumbi seria um escravizador - um livro escrito em 1947 por Edison Carneiro, chamado "O Quilombo dos Palmares". Em um trecho dessa obra, Carneiro afirma que "os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos à força das vilas vizinhas continuavam escravos".

Esse trecho do livro de Carneiro não se refere a Zumbi, nem o cita nominalmente. Refere-se, na verdade, ao próprio Quilombo dos Palmares. Seria impossível que Carneiro estivesse se referindo a Zumbi, pois a sua fonte, conforme referenciado na obra, é um outro livro chamado "O Brasil Holandês", publicado por Gaspar Barléu em 20 de abril de 1647 - oito anos antes do nascimento de Zumbi, em 1655. Ou seja, quando a obra de Barléu - que serviu de fonte para Carneiro, que, por sua vez, serviu de fonte para Narloch e Ventura Santos - foi publicada, Zumbi dos Palmares ainda nem havia nascido - e não poderia ser responsabilizado por um suposto comportamento anterior à sua própria existência.

Mas há ainda outra questão: não há evidências historiográficas adicionais que corroborem a narrativa do livro de Barléu sobre a existência de escravidão no próprio Quilombo dos Palmares - e muito menos há razão para se supor que colonizadores e escravizadores do século XVII que serviram de fonte para o relato de Barléu não inventaram boatos para desqualificar os quilombos que combatiam. É improvável que esses relatos sobre o sistema organizacional de Palmares tenham sido feitos de forma acurada, isentos de exageros, imprecisões ou leituras equivocadas, não sendo razoável descartar o óbvio conflito de interesses de tais narrativas. Pode-se afirmar, portanto, que Barléu não falava sobre Zumbi, e mesmo seu relato sobre o Quilombo dos Palmares - que ele não conhecia pessoalmente - não pode ser admitido como verdade absoluta, pois não é consubstanciado por outras evidências independentes.

Narloch e Ventura Santos cometeram erros crassos de anacronismo, repetindo concepções equivocadas e já corrigidas pela historiografia ulterior. Não existem quaisquer fontes primárias que afirmem que Zumbi tinha escravos. E as poucas fontes primárias que alegam que havia escravidão no Quilombo dos Palmares são todas derivadas de relatos "en passant" de impressões de colonizadores e escravizadores que não conheciam a estrutura social e política do quilombo e, mais do que isso, que tinham interesse em destruí-lo. É, literalmente, contar a história tomando como fatos impressões sem lastro documental fornecidas pelos "vencedores".

Não existe um conceito específico para identificar o sistema político-social do Quilombo dos Palmares. As poucas referências existentes apontam para uma espécie de "socialização", em que não havia propriedade, posse, dinheiro e classes sociais, mas marcada por uma estrutura hierárquica rígida e militarizada - que pode ter sido interpretada como um regime de servidão pelos colonizadores. Mas, à luz do conhecimento que temos hoje, interpretar a estrutura social de um quilombo como semelhante a de um engenho com senhores e escravos é invencionice. O que as fontes primárias existentes permitem afirmar sobre Zumbi é que era o líder do exército do Quilombo dos Palmares e homem de confiança de Ganga Zumba. Para todo o resto, faltam dados históricos, fontes e referências sólidas.

A lenda de Zumbi dos Palmares escravagista é, portanto, apenas isso - uma lenda, uma especulação criativa e anacrônica e, acima de tudo, mais uma manifestação anti-histórica típica da era da pós-verdade, onde pululam teorias absurdas sobre Terra plana, vacinas que causam autismo e a negação da ciência. Serve a uma agenda politica e ideológica específica - uma agenda de negação da contribuição negra, de desconstrução das referências antirracistas e de negação da história.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Othon Pinheiro, Lava Jato e Programa Nuclear Brasileiro

Evolução do PIB per capita da antiga União Soviética

Explosão da Base de Alcântara