Vigiar, punir e lucrar
O encarceramento não é um fenômeno recente, mas a continuidade de uma tradição punitivista que remonta ao século XIX, quando a prisão se tornou um instrumento de controle social utilizado sobretudo contra minorias, como negros e latinos. O perfilamento étnico continua sendo marca registrada do sistema prisional estadunidense. Negros e latinos perfazem 29% da população do país, mas correspondem a 60% da população carcerária. O aumento exponencial da taxa de encarceramento estadunidense nas últimas décadas, entretanto, deriva da inclusão de um novo componente nessa equação: a busca pelo lucro.
O encarceramento em massa virou um negócio extremamente lucrativo no país que tem o maior percentual de penitenciárias privadas do planeta. A Califórnia, estado que concentra a maior parte da população carcerária estadunidense, gasta o equivalente a 200.000 reais por ano com cada preso - quase sete vezes mais do que desembolsa com cada estudante de escola primária. O mercado das prisões movimenta mais de 200 bilhões de dólares por ano e os empresários do encarceramento privado possuem lobistas poderosos financiando campanhas de parlamentares e cooptando apoio de procuradores. Em alguns estados, os presidiários são obrigados a realizar trabalho compulsório, consistindo em mão-de-obra barata para inúmeras multinacionais como IBM, McDonald's, Intel, Wal-Mart, Microsoft, Nike, AT&T e outras. Interesses financeiros frequentemente misturam-se ao populismo e à competição eleitoreira para descobrir quem é mais "duro no combate ao crime", com resultados desastrosos. A atuação da ex-procuradora da Califórnia, Kamala Harris, recém-eleita vice-presidente dos Estados Unidos, é um exemplo disso.
Buscando consolidar a imagem de "inimiga do crime", Kamala Harris criou e ajudou a consolidar uma série de projetos e leis punitivistas que fizeram a população carcerária do estado crescer mais de 600% em poucos anos. Um dos instrumentos mais efetivos da política de encarceramento em massa da Califórnia foi a aplicação da rigorosa versão estadual da Lei dos Três Erros ("Three Strikes Law") que consistia em condenar automaticamente à prisão perpétua qualquer pessoa que cometesse três delitos, incluindo crimes não violentos e de menor potencial ofensivo. Uma pessoa que fosse apanhada fumando maconha por três vezes, por exemplo, poderia ser enviada para a cadeia pelo resto da vida. O resultado foi desastroso, mas altamente lucrativo. A prisão perpétua por motivos banais transformava o detento numa fonte de recursos para os empresários do ramo durante décadas.
Para deleite do negócio de encarceramentos privados, Kamala não se deu por satisfeita apenas com a aplicação indiscriminada da prisão perpétua contra delitos banais. Ela apoiou uma medida do condado de São Francisco que obrigava as escolas a entregarem crianças imigrantes não documentadas para serem detidas por autoridades policiais. A procuradora se esforçou também em enviar para a cadeia pais de alunos que faltassem ou cabulassem às aulas, após a aprovação de uma lei de combate à "vadiagem" em 2011. Ao ser questionada pela imprensa sobre um caso específico de uma mãe que foi presa após a filha, paciente oncológica, faltar às aulas por vários dias por estar debilitada, Kamala respondeu com risadas e ironias.
Alarmada com a situação da Califórnia, agravada por denúncias de superlotação e abusos no sistema penitenciário, a Suprema Corte determinou que o estado deveria conduzir esforços para reduzir a população carcerária. Kamala tentou recorrer da decisão e adiar seu cumprimento, mas o tribunal ratificou a urgência das medidas. Em 2014, o povo da Califórnia aprovou nas urnas a Proposta 47, um projeto de lei de iniciativa popular que visava combater o encarceramento em massa e o punitivismo, retirando infrações menores da lista de delitos que ensejavam encarceramento e prisão perpétua. Kamala se opôs ao projeto.
Não obstante, a severidade da ex-procuradora ao encarcerar negros, latinos, prostitutas, transexuais e pobres em geral parecia desvanecer em medida diretamente proporcional ao valor do saldo bancário do réu. Em 2013, por exemplo, Kamala se recusou a processar Steven Mnuchin, dono do Banco OneWest, mesmo com evidências sugestivas de "ilegalidades generalizadas", conforme depreendido de um memorando vazado do Departamento de Justiça. Steven Mnuchin seria a mesma pessoa que doaria milhares de dólares para a campanha de Harris ao senado alguns anos depois.
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