Democratas x Republicanos
Dois ícones da política estadunidense no século XIX: À esquerda, o senador John Brown Gordon, do Partido Democrata, latifundiário escravagista, líder da Ku Klux Klan e general do exército confederado durante a Guerra de Secessão. À direita, o presidente Abraham Lincoln, do Partido Republicano, responsável por assinar o Ato de Emancipação que aboliu a escravidão nos Estados Unidos.
Desde 1856, os partidos Republicano e Democrata se revezam na presidência dos Estados Unidos. Todos os governadores, deputados e senadores também são filiados a esses dois partidos. Embora o sistema político do país seja formalmente pluripartidário, seu funcionamento, a rigor, é de um regime calcado no bipartidarismo, uma vez que as cláusulas de barreira, a descentralização da legislação eleitoral e a representatividade indireta via colégio eleitoral, baseada em maioria relativa e turno único, tornam impossível a existência de outra agremiação competitiva.
O Partido Democrata costuma ser identificado com o pensamento liberal - em termos econômicos e sociais - e com a defesa de políticas pontuais de ações afirmativas, em especial no âmbito do ativismo identitário. O Partido Republicano, por sua vez, defende igualmente o liberalismo econômico, mas encampa o pensamento conservador no âmbito dos costumes. Essas definições, entretanto, só surgiram em meados do século XX, quando as duas agremiações consolidaram um processo gradual de realinhamento e inversão de suas pautas.
Fundado em 1828 pelos antifederalistas que se opunham à Constituição de 1787, o Partido Democrata passou a agregar no século XIX os setores mais conservadores e reacionários da sociedade estadunidense, sobretudo os grandes latifundiários e os escravagistas. Os democratas se opunham à centralização do poder no governo federal e eram contra os gastos com programas ou benefícios sociais. Durante a Guerra de Secessão, as forças confederadas e os fazendeiros escravocratas dos estados do Sul eram diretamente ligados ao Partido Democrata. A organização extremista Ku Klux Klan, que prega a supremacia branca e a segregação racial, contava com vários políticos democratas em seus quadros iniciais. O Partido Democrata também criou várias milícias e grupos paramilitares supremacistas, que praticavam atentados e assassinatos de afro-americanos e de outras minorias, nomeadamente a milícia dos "Red Shirts".
O Partido Republicano, por sua vez, foi fundado em 1856, em oposição à possibilidade de expansão da escravidão após a proclamação do Ato de Kansas-Nebraska. O partido inicialmente congregava liberais clássicos, abolicionistas, intervencionistas e reformistas. Os republicanos se opunham à escravidão, militavam em favor da extensão das liberdades civis e do direito ao voto aos negros, defendiam investimentos em educação pública e eram favoráveis à criação de programas de integração para imigrantes. Os republicanos apoiaram a União durante a Guerra de Secessão e, sob a liderança de Abraham Lincoln, foram efetivamente os responsáveis por aprovar o Ato de Emancipação que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Nos anos da Reconstrução, o Partido Republicano passou a aceitar a candidatura de negros e a constituir plataformas de governo multirraciais.
O processo de realinhamento político dos partidos se iniciou quando o liberal William Jennings Bryan venceu as prévias do Partido Democrata, dando origem a uma ruptura com as raízes conservadoras da agremiação. Paralelamente, Theodore Roosevelt, do Partido Republicano, assumia a presidência após o assassinato de William McKinley. Roosevelt pregava o intervencionismo do Estado em favor da criação tanto de políticas antitruste como de salvaguardas contra atuação dos sindicatos e organizações trabalhistas. Após o seu mandato, Roosevelt se convenceu de que seu sucessor, o também republicano William Howard Taft, estaria conduzindo os Estados Unidos de forma excessiva rumo ao conservadorismo e fundou uma nova agremiação para agregar os liberais republicanos - o Partido Progressista. A nova agremiação era favorável a pautas que agradavam os quadros mais reformistas e progressistas do Partido Republicano, tais como a criação de um sistema universal de saúde, pensões governamentais para aposentados, auxílios financeiros para desempregados, direito de voto às mulheres. A legenda teve curta duração, sendo extinta já em 1916, mas serviu para remover do Partido Republicano os liberais mais progressistas, reforçando a corrente conservadora do partido.
Boa parte republicanos mais progressistas migraria para o Partido Democrata durante a gestão de Franklin Delano Roosevelt. O presidente democrata fundou a chamada "coalização do New Deal", visando coordenar investimentos públicos para recuperar a economia estadunidense após a Crise de 1929 e a Grande Depressão, eventos que desmoralizaram temporariamente o discurso liberal. A coalizão de Roosevelt incluía apoio de sindicatos, movimentos operários, intelectuais e outros setores que costumavam ser representados pelos Republicanos. Em resposta, o Partido Republicano passou a investir no discurso conservador, focando em pautas como a redução de impostos ou o controle da criminalidade, visando atrair para os seus quadros os críticos da aliança reformista e intervencionista liderada por Roosevelt.
As políticas anti-segregação chanceladas por Harry Truman, a defesa da expansão da rede de proteção social e da igualdade jurídica aos afro-americanos encampadas por Lyndon Johnson e o ativismo em prol das ações afirmativas do pastor democrata Jesse Jackson, sobretudo após o assassinato de Martin Luther King, consolidaram a migração dos votos dos negros para o Partido Democrata. Em consequência, defensores de ideários segregacionistas ou racistas abandonaram a legenda e passaram a migrar para o Partido Republicano. Richard Nixon ainda tentou represar parte dos votos dos afro-americanos para os candidatos republicanos apresentando o Plano Filadélfia, mas a tendência já estava consolidada.
Nas décadas seguintes, as duas legendas trataram de reafirmar suas novas identidades. O partido que linchava negros e os pendurava em árvores hoje faz discursos em prol do direito das minorias, enfocando pautas identitárias em busca do voto dos afro-americanos, latinos, LGBTs e mulheres. Os republicanos, por sua vez, que originalmente criaram a agremiação para lutar contra a escravidão, hoje buscam fidelizar o apoio de racistas e supremacistas e apelam para pautas reacionárias e preconceituosas sob o verniz da defesa do conservadorismo e da moral cristã. Também substituíram a pauta da expansão dos investimentos pelo discurso em prol da redução de impostos, limitação de gastos com benefícios sociais e corte de investimentos públicos. Por trás das rivalidades pontuais utilizadas para atrair votos, os dois partidos seguem como aliados incondicionais na defesa dos interesses do capital e da plutocracia estadunidense, dos lobistas de Wall Street e das empreitadas bélicas imperialistas definidas a cada mandato pelo complexo militar-industrial, mantendo uma tradição que já dura quase dois séculos.
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