Revolta da Chibata
O encouraçado São Paulo é tomado por marinheiros amotinados durante a Revolta da Chibata, uma das maiores insurreições militares da história do Brasil, iniciada no Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1910. Sob a liderança de João Cândido, o "Almirante Negro", marinheiros se sublevaram em protesto contra os severos castigos físicos, os soldos miseráveis e más condições de vida, tomando seis embarcações ancoradas na Baía de Guanabara e ameaçando bombardear a então capital federal caso suas reivindicações não fossem atendidas. A revolta se estendeu por cinco dias, até que o governo prometesse cumprir as exigências. O acordo de anistia, entretanto, foi descumprido e os militares amotinados foram reprimidos.
Entre o fim do século XIX e o início do século XX, o Brasil passou por um período de importantes transformações políticas, tributárias da abolição da escravidão, queda da monarquia e proclamação da República. Diversas rebeliões ocorreram durante o período, contestando a nova ordem política ou o autoritarismo do governo incipiente (Revoltas Navais, Revolução Federalista, Guerra dos Canudos, Revolta da Vacina, etc.). No campo econômico, registrou-se o incremento da demanda por café e borracha nos mercados internacionais, levando ao aumento das receitas do governo federal. Líderes políticos proeminentes da República Velha, tais como o Barão do Rio Branco e Pinheiro Machado, defenderam a aplicação dos recursos suplementares na renovação da frota naval brasileira. A constituição de uma marinha forte responderia às aspirações de converter o Brasil em uma potência militar e serviria para debelar e desencorajar os conflitos e revoltas que se espalhavam pelo país. Assim, em 1904, o congresso brasileiro aprovou o financiamento de um programa de aquisição de embarcações de guerra.
Enquanto a frota da marinha era modernizada, sua estrutura organizacional continuava a reproduzir a segregação racial legada da sociedade escravagista. Último país do continente a abolir a escravidão, o Brasil mantinha valores escravocratas fortemente arraigados em todas as instituições — sobretudo nos ramos militares, que foram reforçados como instrumentos de controle social após a abolição. A Marinha do Brasil se tornara, na prática, um "depósito" de jovens negros, retirados da sociedade por serem vistos como "suscetíveis à criminalidade" e treinados sob uma lógica de obediência irrestrita à hierarquia e de valorização da ordem e da disciplina — ao mesmo tempo em que eram integrados ao aparato bélico-repressivo a serviço da burguesia brasileira. Enquanto os oficiais encarregados dos navios eram brancos e provenientes da classe média e pequena burguesia, a tripulação era composta quase exclusivamente por jovens negros e pobres. Essa disposição evocava a reprodução da lógica repressiva senhorial, resultando em um sistema autoritário e racista, onde os marinheiros eram, na prática, tratados como escravos — e, a exemplo dos cativos, frequentemente punidos com chibatadas.
Oficialmente, o uso da chibata como castigo corporal na Marinha do Brasil havia sido abolido logo após a queda da monarquia, com a promulgação do Decreto Nº. 3, assinado pelo Marechal Deodoro em 1889. Os oficiais da Marinha de Guerra, entretanto, seguiram aplicando o cruel castigo à revelia da lei. Mesmo quando denunciadas na imprensa, as chibatadas eram solenemente ignoradas, pois a sociedade brasileira, habituada às cenas de negros sendo açoitados por brancos, não via motivos para se incomodar. Além de terem seus corpos retalhados com chibatadas, os marinheiros brasileiros eram submetidos a outras punições degradantes e diversas formas de humilhação. Soldos miseráveis, comida de má qualidade e jornadas desumanas completavam o quadro de abusos que causaram na categoria uma insatisfação generalizada.
O descontentamento levou os marinheiros a se organizarem politicamente para reivindicar melhorias nas condições de trabalho. João Cândido foi eleito como porta-voz. Filho de um tropeiro gaúcho, João Cândido havia integrado um grupo de marinheiros que viajaram para a Inglaterra a fim de aprender a operar os navios de guerra brasileiros que estavam sendo construídos nos estaleiros britânicos — os encouraçados Minas Gerais e São Paulo e o cruzador Bahia. Durante o contato com os britânicos, João Cândido tomou conhecimento sobre a revolta dos marinheiros russos ocorrida em meio à Revolução de 1905 e sobre o motim dos tripulantes do Encouraçado Potemkin. Também observou atentamente a diferença de tratamento entre o oficialato britânico e o brasileiro e seus subordinados. João Cândido esteve à frente de diversas tentativas pacíficas de apelar ao bom senso das autoridades em prol de mudanças — todas em vão. Os marinheiros decidiram, então, partir para uma mobilização mais radical, organizando um levante.
Foram criados comitês específicos para cada uma das tripulações dos navios envolvidas na conspiração. O motim estava programado para ocorrer em 25 de novembro, mas a punição de Marcelino Rodrigues de Menezes com 250 chibatadas provocou a ira dos marinheiros, que decidiram antecipar a rebelião. Assim, em 22 de novembro de 1910, os marujos se armaram e tomaram de assalto o encouraçado Minas Gerais. O capitão do navio, João Batista das Neves, reagiu violentamente, chegando a ferir um dos revoltosos enquanto ordenava aos berros que os marinheiros se entregassem. Exaltados, os sublevados reagiram executando o oficial com um tiro na cabeça. Seguiu-se um tumulto que resultou na morte de outros três oficiais e quatro marinheiros. Sob a liderança de João Cândido e gritos de "abaixo a chibata", 2.379 marinheiros aderiram ao levante, assumindo o controle de seis embarcações, incluindo quatros navios de guerra ancorados na Baía de Guanabara — Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro.
Os marinheiros içaram bandeiras vermelhas indicando a insurreição e apontaram 80 canhões para a cidade do Rio de Janeiro, ameaçando bombardear a capital federal caso suas reivindicações não fossem atendidas. Como prova de que não estavam blefando, os marinheiros chegaram a disparar um tiro de advertência, alarmando as autoridades. Os rebelados alertaram as fortalezas de Santa Cruz, Laje e São João a não dispararem seus canhões. Em caso de desobediência, as fortificações seriam obliteradas pelos navios, que tinham poder de fogo muito superior. Amedrontados pela ameaça de disparos, os moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro começaram a abandonar suas moradias e partiram em comboios para outras cidades e bairros mais afastados. Os marinheiros revoltosos enviaram uma carta ao Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, apresentando suas exigências: anistia aos revoltosos, afastamento imediato dos oficiais que submetiam os tripulantes a castigos desumanos, reforma do código de conduta dos marinheiros, soldos dignos e abolição das chibatadas e demais castigos corporais.
A revolta se estendeu por cinco dias, até que Hermes da Fonseca concordasse em cumprir as condições, encerrando o levante em 27 de novembro. A negociação da rendição foi conduzida pelo comandante da Marinha, José Carlos Carvalho. Não obstante, já no dia seguinte, o governo promulgou um decreto que autorizava a expulsão e punição dos marinheiros sublevados, rompendo o acordo sobre a anistia. Duas novas rebeliões, levadas a cabo no Rio Grande do Sul e no Batalhão Naval da Ilha das Cobras no dia 9 de dezembro, foram duramente reprimidas pelas forças governamentais, que não aceitaram a rendição dos amotinados. Dos mais de 2.300 marinheiros que participaram da revolta, 1.216 foram expulsos, 600 foram presos e outros 105 foram condenados a trabalhos forçados nos seringais da Amazônia — dos quais 14 foram fuzilados durante a viagem. João Cândido foi preso e enviado para a Fortaleza da Ilha das Cobras, onde foi encarcerado em um calabouço com outros 17 marujos.
Durante a prisão, os marinheiros foram torturados, privados de água e comida e embebidos em ácido fênico. Dos 17 detidos, apenas João Cândido e João Avelino Lira sobreviveram. Após sair da Ilha das Cobras, João Cândido foi internado no Hospital Nacional dos Alienados, sob a alegação de que era insano. Ficou meses trancafiado no manicômio, até que o diretor da instituição, Juliano Moreira, se convencesse de que o marinheiro não era louco. Liberado do sanatório, foi enviado para uma prisão comum, onde sofreu uma tentativa de assassinato. Após quase dois anos detido, foi a julgamento. Sua defesa ficou a cargo do jurista Evaristo de Moraes, contratado pela Ordem de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. João Cândido foi absolvido pela justiça, mas terminou banido pela Marinha. Desempregado, estigmatizado como criminoso e submetido a sérias privações, passou a viver precariamente, trabalhando como estivador e vendedor de peixes na Praça XV.
O ódio do oficialato militar a João Cândido e aos marinhos amotinados durante a Revolta da Chibata permaneceu inalterado ao longo da história e as tentativas de retratá-los de forma condigna foram reprimidas. Em 1934, o jornalista Aparício Torelly, conhecido pela alcunha de Barão de Itararé, foi espancado após escrever um artigo para o Jornal do Povo exaltando João Cândido. O comando militar proibiu os marinheiros de comparecerem ao funeral do "Almirante Negro" em 1969. Em 1974, o samba "O Mestre-Sala dos Mares", composto por João Bosco e Aldir Blanc em homenagem ao líder da Revolta da Chibata foi censurado pela ditadura militar. Somente após a redemocratização, as autoridades públicas passaram a reconhecer a importância histórica de João Cândido. Em 2008, o marinheiro foi homenageado com um monumento erguido na Praça XV e obteve anistia política póstuma por meio do projeto de lei 11.756, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A inscrição de seu nome no rol dos heróis do Panteão da Pátria, pleiteada desde 2005, continua pendente graças à resistência dos militares.
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