Teoria Queer x marxismo


A Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos em meados da década de 1980 como um desdobramento dos estudos sobre sexualidade, impulsionados pela intensificação do ativismo político do feminismo e das minorias sexuais. Fortemente influenciada pelo pós-estruturalismo de Michel Foucault, pela psicanálise de Lacan e pelo desconstrutivismo de Derrida, a Teoria Queer afirma que a identidade e a expressão de gênero, a orientação sexual e o próprio conceito de sexo biológico são construtos sociais, ficções culturais utilizadas para permitir categorizações generalizantes ("homem" ou "mulher", "heterossexual" ou "homossexual", "normativo" ou "desviante", "natural" ou "contra-natural"), por sua vez instrumentalizadas como ferramentas de poder e de controle social - e invariavelmente caracterizadas pela presença de dinâmicas de opressão/submissão. A Teoria Queer toma o sexo como premissa básica para a compreensão de toda a sociedade e da ordem socialmente estabelecida e preconiza que devemos denunciar esses construtos sociais através do discurso e de mudanças de comportamento, de modo a superar essas categorizações e, finalmente, desarticular a opressão inerente ao sistema.

A popularização dos postulados da Teoria Queer nos círculos acadêmicos progressistas acompanhou a crise de identidade da esquerda pós-maio de 1968 e a ascensão do pós-modernismo, caracterizado por sua ênfase na linguagem e pela tendência a rejeitar sistemas complexos e processos gerais em favor de narrativas subjetivas - não raramente desprovidas de conhecimento analítico ou empírico e tendentes a certo obscurantismo e anticientificismo. Influenciadas, cooptadas ou pressionadas pelos aparelhos ideológicos da burguesia ocidental, as esquerdas partidárias e institucionais abriram mão de quaisquer aspirações radicais ou revolucionárias, suplantadas em favor de uma agenda reformista de colaboração de classe e conciliação. Em consequência, os movimentos sociais gradualmente se afastaram da tese da centralidade da luta de classes em favor de outras interpretações das dinâmicas sociais, mais coniventes aos interesses burgueses - substituindo a luta de classes pela luta contra o patriarcado ou a heteronormatividade, por exemplo. Na ausência de movimentos de massa legítimos, emergiram teorias e movimentos que se tornaram um simulacro de resistência, que apelavam para a psicologia da individualização, dando aparente vazão aos sentimentos de angústia e de estresse permanente daqueles que não conseguiam corresponder às expectativas e demandas da sociedade.

Essa crise de identidade é relatada pelos próprios autores da Teoria Queer. Em "Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade", a filósofa estadunidense Judith Butler, provavelmente a maior referência da Teoria Queer, reconhece que o ponto focal de sua abordagem é o indivíduo que mergulhou em crise e encontra-se preso a uma teia de relações de poder e opressão, cuja identidade é incerta e contraditória. Butler afirma, por exemplo, que a mulher "não existe". Ela é uma mera categoria, uma projeção de preconceitos, estereótipos, opiniões e padrões comportamentais impostos sobre um corpo humano. A "mulher" só existe a partir do momento em que é transformada em mulher pelas estruturas de poder da sociedade.

Essa abordagem proposta por Butler não é nova na história da filosofia. Ela apenas aplicou velhos questionamentos filosóficos à questão de gênero, tomando o dualismo entre sexo biológico e gênero social como um avatar para a clássica oposição entre matéria e ideia. É justamente aí que se encontra a incompatibilidade mais óbvia entre Teoria Queer e o marxismo. Enquanto a Teoria Queer se insere no campo da idealização, o marxismo se pauta pelo materialismo. A segunda incompatibilidade refere-se ao fato de que, se por um lado Butler consegue identificar a existência de estruturas de poder, por outro lado ela falha em conceber um meio de superá-las.

Em suas obras, Butler aborda o dualismo "matéria x ideia" sob uma problemática distinção de "natureza x cultura" e toma partido pela interpretação dos fenômenos sociais sob o viés idealista - i.e., como construtos culturais. Ela propõe então dissolver essa distinção e livrar-se do dualismo reduzindo sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual a meras ficções culturais. Esse idealismo é um pilar da Teoria Queer, presente em várias outras obras basilares, onde anatomia, biologia, ciências naturais são tratados como meras ilusões construídas pela linguagem. Essa percepção da realidade se choca frontalmente com a abordagem materialista do marxismo.

Na obra "Materialismo e Empiriocriticismo" de 1909, Lenin já advertira que esses joguetes intelectuais representam "o mesmo lixo de sempre, com uma tabuleta ligeiramente remodelada ou repintada", emendando que "o caráter objetivo do mundo físico consiste no fato dele existir não para mim, pessoalmente, mas para todos, e ter um significado definido para todos". O risco de subordinar o mundo material ao idealismo é de validar qualquer argumento, tornando impossível distinguir certo e errado. Religião, pseudociência, a noção de que mulheres são inferiores aos homens, ausência da gravidade, qualquer coisa pode ser explicada por meio da relativização do mundo material como mera ilusão, como construto social. Se tudo é uma ilusão, nenhuma subjetividade pode ser questionada. E o idealismo subjetivo que trata qualquer opinião como válida tem um papel fundamental na sustentação de todas as ideologias reacionárias.

A Teoria Queer acerta ao dizer que a sociedade opera sob um sistema de sociabilização com base em aspectos de gêneros previamente definidos. Não há explicação biológica para associar a cor rosa às meninas ou a cor azul aos meninos, ou dar bonecas para garotas e carrinhos para os garotos. Isso não significa, entretanto, que os construtos sociais sejam fenômenos arbitrários e incidentais. Antes disso, são consequências das bases materiais calcadas na interação do homem com a natureza e no desenvolvimento da própria sociedade humana. A Teoria Queer baseia sua análise sob uma idealização de um passado linear, onde a opressão teria sido sempre calcada em relações de gênero, ignorando o fato de que a subjugação da sexualidade feminina e o reforço aos padrões de comportamentos sexuais normativos nos moldes atuais surgiram a partir da necessidade de transformar a família numa instituição a serviço do capital, como instrumento para a garantia das necessidades de criação de excedentes e de preservação da propriedade privada. Ao idealizar um passado calcado na opressão de um gênero por outro, a Teoria Queer invalida a tese marxista da luta de classes.

A Teoria Queer também acerta ao assinalar que a ciência não é neutra, mas ignora que sua subordinação costuma estar a serviço dos interesses da classe dominante - e não necessariamente de um determinado gênero. Os teóricos Queer estabelecem expectativas de definições rígidas e inflexíveis para desqualificar todas as categorias de gênero, orientação sexual e sexo biológico. Os marxistas, por sua vez, reconhecem a existência do sexo biológico como um fato natural e entendem que a grande maioria dos humanos podem ser designados como pertencentes ao sexo masculino ou feminino - o que, evidentemente, não invalida a existência da intersexualidade, das pessoas transgêneras e de pessoas que se autodeclaram como não binárias.

O aspecto mais pernicioso da Teoria Queer, entretanto, é o fato de que ela vende desesperança, desmobilização, conformismo e resignação sob uma embalagem de transformação social. A opressão na Teoria Queer é fortemente embasada na noção foucaultiana de poder, concebido como místico e onipresente, assinalando a inutilidade da resistência. Há um pessimismo permeando a Teoria Queer que ecoa o discurso liberal de Fukuyama sobre o "fim da história" e a impossibilidade da revolução. Não por acaso as sugestões práticas dos teóricos Queer estão sempre limitadas ao campo das alterações cosméticas da linguagem e da cultura - adequação de termos, criação de pronomes neutros, concepção de uma nova gramática ou uma nova ética corporativa. Não há sequer o interesse na reforma do capitalismo - mas meramente mudar a forma como a sociedade enxerga as minorias sexuais.

É justamente por isso que a Teoria Queer encontrou aceitação plena em partidos reformistas e nos meios liberais, uma vez que oferece a possibilidade de substituição dos métodos de luta de classes pelo enfoque em ações como reformas linguísticas, espaços culturais, comercialização de produtos estampados por celebridades trans ou faixas de pedestre coloridas. É igualmente uma ferramenta útil para que a burguesia e as forças capitalistas explorem nichos de mercado e lucrem com o "pink money", apresentando-se como "LGBT-friendly" e pintando uma imagem progressista útil aos seus negócios. Corporações multinacionais gigantes como Coca-Cola, IBM, Apple e Microsoft já adotam linguagem neutra e outras pautas identificadas como "Queer" em seus códigos profissionais, além de financiarem eventos, shows e paradas do orgulho LGBT que se tornam mais e mais comerciais a cada ano. Lucram financiando a produção de ideias aparentemente radicais, mas que, na verdade, são absolutamente inofensivas.

A Teoria Queer, portanto, serve meramente para esvaziar o ativismo LGBT de qualquer radicalidade, domando-o para sua plena instrumentalização pelo capital, ao mesmo tempo em que reforça a individualização, desarticulando a luta coletiva para camuflar a exploração e a opressão. Ironicamente, o movimento que surgiu como uma crítica às políticas identitárias tradicionais dos anos setenta serve hoje unicamente à fragmentação do ativismo LGBT, produzindo um número incontável de supostas identidades criadas a partir de todas as combinações possíveis e imagináveis de sexo biológico, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação sexual. Ao invés de criar a união de todos em uma luta contra o sistema, fortalece uma lógica sectária que leva à exclusão mútua e à rivalidade entre incontáveis grupos. Como em um sonho molhado de um liberal, é o indivíduo - origem, cultura, gênero - que se torna o cerne dos debates, sempre fomentados por uma competição sobre quem é mais oprimido e, portanto, tem o direito de falar sem ser questionado.

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