A Mídia Ninja e terceiro setor


Nos países ocidentais, a expansão do "Terceiro Setor" (nome dado ao conjunto das organizações da sociedade civil envolvidas em atividades ditas "de utilidade pública") ocorreu em paralelo ao processo de desmonte do Estado de bem-estar social. A desarticulação da esquerda radical e dos movimentos sociais e a substituição das aspirações revolucionárias pela agenda reformista de colaboração de classes abriram caminho para que o setor privado pressionasse os governos ocidentais a reduzirem sua atuação em políticas públicas, criando novos nichos e oportunidades de investimento para o mercado. A desagregação do Bloco Socialista na Europa, a dissolução da União Soviética e a globalização aprofundaram esse processo, resultando na proliferação da atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs), fundações, entidades filantrópicas, think tanks e outras formas de associações civis de interesse público em todo o mundo.

Em um primeiro momento, a expansão do Terceiro Setor foi influenciada pelas vantagens fiscais. Nos Estados Unidos, por exemplo, criar uma ONG ou uma entidade filantrópica pode resultar numa redução de até 30% do imposto de renda da instituição mantenedora, ao passo que a legislação obriga o investimento de apenas 5% dos bens declarados no ano anterior em ações sociais. Isso deixa 95% do dinheiro livre para ser administrado como a instituição mantenedora quiser, exceto em proveito pessoal. Na prática, o empresário dono da corporação e da ONG passa a manipular duas fortunas paralelas - uma pessoal e outra que pode ser utilizada para turbinar indiretamente a primeira. E é aí que reside a segunda grande vantagem que ajudou a fomentar a "febre" do Terceiro Setor: uma ONG ou fundação bilionária pode ser utilizada para fazer lobby, adquirir contratos, obter reservas de mercado, financiar movimentos, pressionar ou derrubar governos, fomentar o surgimento de lideranças alinhadas - enfim, criar oportunidades para lucrar, controlar mercados, subverter as instituições e manipular o poder. As ONGs viraram fachadas benevolentes que mascaram a atuação das elites.

Não demorou para que a plutocracia ocidental começasse a perceber que o modelo permitia o reforço da própria ordem social e a neutralização de qualquer resquício de atuação em prol da ruptura do sistema. Emulando a filosofia do mafioso fictício Michael Corleone, que asseverava a necessidade de "manter os amigos próximos e os inimigos mais próximos ainda", ONGs, entidades filantrópicas e fundações multibilionárias passaram a atuar diretamente nos movimentos de base e nas organizações progressistas, cooptando lideranças, financiando projetos e instituindo uma série de amarras para domesticar e subjugar o ímpeto revolucionário de grupos mais radicais. Um estratagema engenhoso através do qual as grandes corporações multibilionárias se tornam não apenas os grandes agentes do capitalismo, mas também responsáveis por controlar uma falsa oposição ao sistema - e sua profusão de simulacros de pretensas causas sociais, visando manter os ativistas ocupados em lutas irrelevantes que não arranham sequer a superfície dos problemas estruturais.

Cooptadas pelo grande capital, as organizações progressistas passam a focar em questões sociais secundárias e compatíveis com os interesses do mercado - representatividade étnica, mulheres e negros em cargos de liderança, adoção da linguagem neutra, legalização da maconha, etc. A luta de classes e os problemas estruturais do capitalismo são ignorados. A palavra "revolução" some do léxico das organizações. O imperialismo é naturalizado por meio de perfumaria e ações estéticas, ao passo que a militância é instada a exaltar e elogiar as grandes corporações toda vez que organizam alguma campanha de sinalização de virtude, como comerciais com minorias ou ações que abordam tangencialmente pautas identitárias. Utilizando think tanks, ONGs e fundações, bilionários formam suas próprias lideranças políticas, buscando talentos entre minorias e classes marginalizadas, treinando-os para que consigam camuflar a agenda neoliberal por meio do apelo às pautas progressistas de costumes.

Discute-se há algum tempo a influência de think tanks liberais e ONGs estrangeiras no fomento a grupos conservadores e reacionários no Brasil. Na última década, a atuação de organizações como Instituto Millenium, Mises Brasil, MBL, Fundação Atlas e Estudantes pela Liberdade na articulação golpista e na emergência do protofascismo bolsonarista ficou escancarada. Não obstante, a presença cada vez maior de ONGs, entidades filantrópicas e fundações liberais nas organizações progressistas do Brasil tem passado despercebida. É o caso, por exemplo, da Mídia Ninja, considerada a maior rede de "mídia alternativa" do Brasil.

A Mídia Ninja (acrônimo de "Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação") foi criada em 2013, ganhando notoriedade nacional ao cobrir as chamadas Jornadas de Junho. Os protestos inicialmente visavam contestar o aumento de tarifas de transporte público, mas acabaram agregando pautas e segmentos sociais distintos e atraindo interesses difusos, tornando-se as maiores mobilizações da história do país desde a redemocratização e um fator de desestabilização do governo de Dilma Rousseff. Realizando a cobertura ao vivo de dentro das manifestações, a Mídia Ninja ganhou centenas de milhares de seguidores e a admiração de amplos setores da esquerda brasileira pela autonomia e independência em suas abordagens.

Em 2014, o grupo seguiu consolidando sua marca como "mídia alternativa", destacando-se, dessa vez, pela cobertura nos protestos contra a Copa do Mundo. Nesse mesmo ano, a Mídia Ninja fechou parceria com o Instituto Moreira Salles, a ESPN e a ONG internacional Save the Dream para registrar as manifestações dos movimentos contra a Copa, durante o projeto "Offside Brazil". Com financiamento do Banco Itaú, a Mídia Ninja também foi selecionada para o projeto "Clube de Colecionadores", licenciando a comercialização de suas fotografias.

O crescimento exponencial da organização pode ser medido pela expansão da sua infraestrutura. A Mídia Ninja atua em mais de 250 cidades do Brasil e possui parcerias em 21 países da América Latina. A organização é subordinada ao circuito Fora do Eixo, um coletivo-empresa criado pelo produtor cultural Pablo Capilé que atua em todos os estados do Brasil e em quase todos os países latino-americanos. O Fora do Eixo Funciona como um articulador de coletivos e organizações culturais, reunindo mais de 2.800 parceiros e 20 mil colaboradores diretos e indiretos. A organização é financiada por meio de verbas captadas em editais públicos e parcerias privadas no Brasil e no exterior. Apenas entre 2006 e 2012, o Banco Fora do Eixo - braço financeiro da organização - havia movimentado mais de 88 milhões de reais.

Entre os financiadores internacionais da Mídia Ninja estão ao menos duas organizações estadunidenses com históricos polêmicos: a Fundação Ford e a Open Society Foundations. A Fundação Ford é conhecida por suas ligações históricas com a Agência Central de Inteligência (CIA) e sua colaboração com as iniciativas imperialistas do governo estadunidense. A organização apoiou golpes de Estado contra governos não alinhados aos Estados Unidos e ajudou a financiar órgãos de repressão à esquerda na América Latina e na Indonésia. Também patrocinou o projeto MKULTRA e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), onde Fernando Henrique Cardoso trabalhou por quase quatro décadas.

Já a Open Society Foundations, pertencente ao magnata George Soros, é a segunda maior organização "filantrópica" do mundo. A Open Society ajudou a financiar as chamadas "revoluções coloridas" - operações de desestabilização e tentativas de golpe que ocorreram nos países do antigo Bloco Socialista, União Soviética e China. O caso mais famoso foi o apoio aos dissidentes do governo iugoslavo, que resultou em uma série de guerras civis e na fragmentação do país, mas permitiu a George Soros adquirir o complexo siderúrgico de Trepca, avaliado em 5 bilhões de dólares. A Open Society tem sido expulsa de vários países nos últimos anos: foi banida de Uganda em 2008, expulsa da Rússia em 2015, obrigada a encerrar as atividades no Paquistão em 2017, forçada a se retirar da Hungria e da Turquia em 2018.

Mais recentemente, a Mídia Ninja anunciou uma parceria com a Oximity - uma plataforma de mídia digital fundada por Sanjay Goel, um banqueiro bilionário de Wall Street. A profusão de parcerias com ONGs estadunidenses, bancos e fundações bilionárias comandadas por grandes capitalistas talvez ajudem a explicar por que a organização, que bradava contra a mídia oligopolista em 2013, hoje se limita a louvar a eleição de Biden e Harris, exaltar pautas do Big Brother, militar contra a opressão do binarismo e a exigir a liberdade dos mamilos femininos.

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