A Revolução Cubana e o movimento LGBT

Embora a Revolução Cubana tenha operado profundas transformações na organização política e nas relações sociais do país, problemas estruturais enraizados nas sociedades latino-americanas, como a homofobia e o machismo, permaneceram intocados ao longo dos anos sessenta. O tratamento dispensado aos homossexuais pelo governo revolucionário cubano é alvo de diversas controvérsias - incluindo desde críticas pertinentes e corretas até análises anacrônicas e descontextualizadas. Há ainda muitas acusações absolutamente fantasiosas, sem qualquer tipo de lastro documental, difundidas por revisionistas e ideólogos da direita que, não raramente, se opõem às próprias demandas e lutas da comunidade LGBT.

Não há, por exemplo, nenhum registro historiográfico ou documental (seja do governo cubano, seja de seus opositores) que comprove os rumores sobre supostos fuzilamentos de homossexuais em Cuba. Os textos apócrifos e sem fontes que circulam pelas redes sociais com tais alegações são absolutamente falsos. Por outro lado, a afirmação de que centenas de homossexuais foram internados em campos de readequação comportamental no início da Revolução Cubana é verídica.

Em meados da década de 1960, aproximadamente 800 homossexuais foram compulsoriamente internados nas chamadas Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAPs) - campos de trabalho compulsório que existiram em Cuba durante três anos, entre 1965 e 1968. Convém precisar, entretanto, que as UMAPs congregavam todos os homens em idade de ingressar no serviço militar que fossem vistos como "contrarrevolucionários", não apenas os homossexuais - que eram minoria entre os conscritos (800 indivíduos em um universo de 25.000 pessoas). As UMAPs não foram criadas, portanto, como parte de uma política deliberada de perseguição aos homossexuais. Não obstante, os homossexuais internados eram submetidos a um processo de readequação comportamental, que incluía desde "aconselhamento psicológico" até a "reeducação" de modos, gestos e posturas, visando aproximá-los dos padrões comportamentais considerados adequados.

As ações do governo cubano causam consternação hoje, mas passaram despercebidas nos anos sessenta. Isso ocorre porque, nessa época, quase todos os países do Ocidente reprimiam de forma ainda mais severa a homossexualidade. A relação entre pessoas do mesmo sexo era tratada, na melhor das hipóteses, como uma doença - e somente deixaria de ser classificada assim pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990. As relações homossexuais eram criminalizadas na grande maioria dos países. Em muitas nações capitalistas classificadas como "democracias liberais", tais como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha Ocidental, homossexuais eram submetidos a diversas formas de violência, assédio e abusos ainda piores.

O governo dos Estados Unidos, por exemplo, perseguiu duramente a comunidade LGBT através de uma política de Estado alcunhada "Terror Lilás", que constrangeu, estigmatizou, demitiu e encarcerou centenas de milhares de funcionários públicos, sobretudo militares. Ao mesmo tempo, homossexuais britânicos eram enviados para a cadeia sob a acusação de "sodomia" e frequentemente forçados a se submeterem à castração química - caso notório de Alan Turing, expoente da luta contra o nazismo. Da mesma forma, a violência institucional contra a comunidade LGBT era a regra em quase todos os países latino-americanos. No Brasil, homossexuais afeminados e transexuais eram frequentemente internados compulsoriamente em sanatórios, a exemplo da infame Colônia de Barbacena, onde dezenas de milhares de pessoas morreram em decorrência de abusos e maus tratos.

A oposição da sociedade cubana à política de internação compulsória nas UMAPs iniciou-se ainda nos anos sessenta. Em consequência da pressão popular, as UMAPs foram fechadas em 1968 e todos os prisioneiros foram libertados. O governo cubano, entretanto, seguiu possuindo algumas práticas discriminatórias, vetando entrada de pessoas LGBT nas forças armadas ou em cargos da administração pública. Nos anos setenta, refletindo tanto a atuação educacional de movimentos sociais pautados pelos ideais revolucionários de igualdade quanto as influências da chamada "revolução sexual" no mundo ocidental, iniciou-se em Cuba um processo gradual de maior tolerância em relação à pauta dos costumes.

Em 1975, a Corte Suprema de Cuba deu ganho de causa a um grupo de artistas gays que pediram indenização do Estado e reintegração aos seus postos de trabalho, dos quais haviam sido removidos na década anterior. O julgamento se tornou um marco inicial de uma série de reformulações do governo cubano em suas políticas em relação à comunidade LGBT. No mesmo ano, o governo cubano instalou uma comissão para discutir mudanças legais no campo da sexualidade. Em 1979, como consequência direta dessas discussões, Cuba se tornou um dos primeiros países do Caribe a descriminalizar as relações homossexuais.

A década de oitenta foi marcada por ações que visavam aprofundar essas mudanças. Em 1981, quase uma década antes da Organização Mundial da Saúde deixar de classificar a homossexualidade como doença, o Ministério da Cultura de Cuba publicou o manifesto "Em Defesa do Amor", em que descrevia a homossexualidade como uma variação saudável da sexualidade humana e argumentava que a discriminação homofóbica era uma atitude inaceitável e contrarrevolucionária. O manifesto orientava os agentes públicos a rejeitarem qualquer tipo de ação que visasse constranger ou punir indivíduos por serem homossexuais. Em 1986, a Comissão Nacional de Educação Sexual classificou oficialmente a homossexualidade como "orientação sexual" e determinou que a homofobia deveria ser combatida através da educação pública. Dois anos depois, o governo cubano proibiu expressamente a polícia de assediar a comunidade LGBT. Também em 1988, em uma entrevista histórica a uma rede de televisão espanhola, Fidel Castro criticou as ações de repressão à homossexualidade. Sua sobrinha, Mariela Castro, assumiu nesse mesmo ano o cargo de coordenadora do recém-criado Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX), órgão responsável pelas ações de educação sexual, de apoio à população LGBT e de combate à homofobia e integração da comunidade LGBT à sociedade. No fim da década de oitenta, o Ministério da Cultura passou a publicar literatura com temática LGBT.

A década de 1990 foi marcada por um reforço das ações do estado em prol da proteção à liberdade sexual. Fidel Castro reafirmou em uma entrevista de 1993 que "a homossexualidade é uma tendência natural que deve ser respeitada". No mesmo ano, Cuba instituiu cursos de educação sexual em todo o país e criou campanhas de combate à homofobia. A proibição de pessoas LGBT de servir nas forças armadas foi oficialmente revogada. Em 1994, o governo cubano financiou o longa metragem "Morango e Chocolate", dirigido por Tomás Gutiérrez Alea. A obra abordava o preconceito e discutia o tratamento injusto sofrido pela população LGBT. Em 1995, um grupo de drag queens cubanas organizou e liderou a procissão anual do Dia do Trabalhador, acompanhadas por duas delegações LGBT oriundas dos Estados Unidos. Cuba aos poucos foi se consolidando como um destino turístico "gay-friendly" e bares e boates LGBT se multiplicaram por Havana.

Em dezembro de 2000, metade dos filmes latino-americanos exibidos durante o Festival de Cinema de Havana tinha temática LGBT. Pouco tempo depois, foi realizada a Semana do Cinema de Diversidade Sexual na cidade cubana de Piñar del Río. Novas produções do governo cubano para a televisão também buscavam visibilizar protagonistas LGBT - as novelas "O Jardim das Samambaias" de 2004, com um casal de lésbicas, e "A outra face da lua", de 2006, que destacava um casal gay. Em 2007, foi criado o Dia Nacional de Combate à Homofobia, celebrado em 17 de maio. No ano seguinte, os cubanos passam a ser autorizados a alterar o gênero legal. O governo cubano também passou a oferecer gratuitamente operações de redesignação sexual e terapia hormonal. Em 2010, Fidel Castro admitiu responsabilidade pelas perseguições contra a população LGBT na década de 1960 e desculpou-se publicamente, classificando as internações compulsórias nas UMAPs como "uma grande injustiça". Em 2012, Adela Hernandez tornou-se a primeira mulher transexual eleita pela população para o cargo de autoridade do Poder Popular da Câmara Municipal de Caibarien, na província de Villa Clara.

Em fevereiro de 2019, uma importante vitória da comunidade LGBT foi conseguida através de uma emenda à Constituição Cubana. O artigo 36, que continha a definição de casamento como "a união entre um homem e uma mulher" foi revogado por meio de um referendo popular e substituído por um trecho que o define como "instituição social e legal baseado no livre arbítrio e na igualdade de direitos, obrigações e capacidade jurídica dos cônjuges". A alteração abre caminho para a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que deverá ser normatizado com a redação do Código da Família, em fase de consulta popular.

Carlos Sanchez, representante da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (federação mundial de organizações LGBTs sediada em Genebra) visitou Cuba para averiguar o status das demandas e da situação da comunidade LGBT no país. Em seu relatório, reconheceu que não havia repressão institucional à comunidade LGBT cubana, elogiando também a maior aceitação das sexualidades não normativas por parte dos habitantes da ilha. Cuba é hoje o país com a menor incidência de crime contra transexuais nas Américas. No monitoramento de homicídios contra transexuais feito entre 2008 a 2016 pela ONG TransRespect, Cuba registrou três casos de morte por transfobia. O Brasil, por sua vez, lidera o ranking mundial de países que mais matam transexuais, com 868 assassinatos - quase o triplo do segundo colocado da lista, o México.



A psicóloga Liliana Morenza e dois homossexuais cubanos em uma Unidade Militar de Ajuda à Produção (UMAP) em 1967.



Imperio de Cuba, a drag queen mais famosa da ilha, ajudou a organizar a primeira Parada do Orgulho LGBT de Havana em meados dos anos noventa.



A enfermeira Adela Hernández, primeira pessoa transexual a ser eleita como representante legislativa em Cuba.



"El Mejunje de Silverio", um centro cultural LGBT mantido pelo governo cubano em Santa Clara.


Participantes da Parada do Orgulho LGBT se manifestam em marcha pelo Paseo del Prado em Havana, capital de Cuba, 11 de maio de 2019.

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