O cristianismo primitivo e o socialismo cristão


No texto "Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo", publicado em 1895, o teórico alemão Friedrich Engels discorre sobre as semelhanças entre o ideário comunista e o modo de organização das sociedades paleocristãs. Engels observa que, assim como a classe operária é subjugada pela opressão da burguesia, os cristãos primitivos eram oprimidos e perseguidos pelo Império Romano. O cristianismo primitivo era a religião dos pobres, dos excluídos, dos servos e dos escravos. E da mesma forma que os comunistas são difamados como inimigos do Estado, da religião, da família e da ordem social, os cristãos primitivos eram rotulados como inimigos da sociedade. Comunismo e cristianismo oferecem aos seus adeptos a possibilidade de redenção. Mas enquanto o cristianismo promete a salvação na vida eterna após a morte, o comunismo conclama as massas para a transformação da sociedade nessa vida, nesse mundo.

Na mesma obra, Engels se ocupa das semelhanças entre o modo de organização social dos primeiros cristãos e o ideário comunista e aborda os paralelismos dos dois fenômenos ao longo da história, pontuando que as sublevações camponesas medievais quase sempre foram permeadas pelo ideal de restauração dos princípios do cristianismo primitivo. Engels cita exemplos históricos de movimentos cristãos organizados de forma similar aos princípios socialistas e aborda a influência das ideias cristãs sobre os operários franceses que se juntaram aos levantes de 1830. Essa semelhança foi sintetizada de forma enfática pelo historiador Ernest Renan, um dos principais estudiosos do cristianismo, ao afirmar: "Se quiserem ter uma ideia de como eram as primeiras comunidades cristãs, visitem uma seção local da Primeira Internacional".

Jesus Cristo foi descrito por diversos socialistas cristãos como "o primeiro comunista". Sua admoestação à ganância dos ricos, sua insubmissão aos interesses dos poderosos e sua predileção pela defesa dos famintos, dos pobres e dos excluídos influenciaram a ação de diversas comunidades cristãs ao longo da Idade Média. E, com efeito, há diversas passagens bíblicas que repreendem a avareza dos ricos e o acúmulo dos bens. O irmão de Jesus, São Tiago, o Justo, é registrado na Bíblia como autor de uma severa advertência aos aristocratas que exploram os trabalhadores, como se lê em Tiago 5:1-6: "Ouçam agora vocês, ricos! Chorem e lamentem-se, tendo em vista a miséria que lhes sobrevirá. A riqueza de vocês apodreceu e as traças corroeram as suas roupas. O ouro e a prata de vocês enferrujaram e a ferrugem deles testemunhará contra vocês e como fogo lhes devorará a carne. Vocês acumularam bens nestes últimos dias. O salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos, e que por vocês foi retido com fraude, está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Vocês viveram luxuosamente na terra, desfrutando prazeres, e fartaram-se de comida em dia de abate. Vocês têm condenado e matado o justo, sem que ele ofereça resistência."

Há ainda versículos da Bíblia que indicam semelhanças entre as formas de organização dos apóstolos de Cristo e o ideário comunista. Em Atos 2:44-45 e 4:32-35, por exemplo, lê-se: "E todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam entre todos, conforme a necessidade de cada um. (...) E era um só o coração e uma só a alma da multidão dos que criam, e ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas todas as coisas lhes eram comuns. Não havia entre eles nenhum necessitado, pois todos os que possuíam heranças ou casas as vendiam e traziam o valor do que fora vendido e o depositavam aos pés dos apóstolos. E se repartia a qualquer um, conforme a sua necessidade."

As primeiras comunidades cristãs viviam em sociedades comunais, sob regimes de cooperação mútua e repartição de bens. Durante a Baixa Idade Média, muitos mosteiros conseguiram manter esse sistema de organização social comunal e alguns teólogos como João Crisóstomo e Basílio de Cesareia advogaram ideais de justiça social e de ação da igreja em prol da ajuda aos mais necessitados. A institucionalização do cristianismo, reconhecido como religião oficial do Império Romano, entretanto, levou ao um processo gradual de elitização do clero e de acomodação da interpretação da doutrina à ordem econômica e aos poderes organizados. A igreja tornou-se um instrumento de domínio ideológico e controle social. Com isso, as organizações cristãs comunais entraram em colapso e os "dissidentes" que pregavam a retomada das origens cristãs comunais passaram a ser perseguidos e reprimidos pelas autoridades eclesiásticas. São Francisco de Assis, por exemplo, teve inúmeros conflitos com o clero por pregar a renúncia aos bens materiais em favor dos necessitados. Pedro Valdo, criador da comunidade dos "Pobres de Lyon", chegou a ser expulso e excomungado pela Igreja Católica por questionar a avareza dos aristocratas cristãos.

Os ideais das comunidades paleocristãs, entretanto, emergiriam eventualmente ao longo dos séculos seguintes. Em 1476, Hans Böhm e seus seguidores se rebelaram e passaram a pregar a igualdade social, o fim das castas sociais e do trabalho forçado - e acabaram sendo executados. Em 1516, Thomas More, mártir da Igreja Católica, publicou "Utopia", obra que defende a criação de uma nova forma de organização social, onde a propriedade privada seria abolida e os bens seriam divididos entre os necessitados. Em 1533, Jacob Hutter fundou as comunidades anabatistas - a "ala radical" da Reforma Protestante, que vivia em sistema de cooperação mútua e comunhão econômica. Engels chegou a se referir aos anabatistas como "protocomunistas". Diversos grupos cristãos que reivindicavam reformas sociais emergiram na Grã-Bretanha entre 1642 e 1649. No País de Gales, Gerrard Winstanley chegou a esboçar uma constituição de uma comuna rural de uma terra sem donos, a ser gerida de forma conjunta por todos que nela trabalhavam, e defendeu abertamente a desapropriação de todos os bens do clero e da nobreza britânica. Na Rússia, os Doukhobors também praticavam a propriedade comunal das terras, a partir de uma interpretação dos textos cristãos.

Esses grupos, sempre vistos como ameaças à ordem econômica e aos privilégios dos aristocratas, foram invariavelmente assediados, perseguidos e desarticulados. Não obstante, legaram aspirações aos teóricos do século XIX que, por sua vez, influenciaram no surgimento das concepções atuais do socialismo e do comunismo - tais como os owenismo na Inglaterra e o fourierismo na França. Ainda que afastado do materialismo marxista e do conceito de luta de classes, o socialismo cristão oitocentista teve importante papel na popularização das reivindicações das classes trabalhadoras, na articulação das organizações sindicais e na luta em prol de justiça social. Contribuíram para esse processo autores como Henri de Saint-Simon, John Ruskin, Lamennais, Albert de Mun, Frederick Denison Maurice, Thomas Hughes, Charles Kingsley e Adin Ballou, entre outros.

No início do século XX, Rosa Luxemburgo também se dedicou a analisar os paralelos entre o cristianismo e o socialismo. No texto "O Socialismo e as Igrejas", publicado em 1905, Luxemburgo critica as posturas reacionárias do clero, identificando-as como contraditórias em relação aos ensinamentos de Cristo: "O clero, que se torna o porta-voz dos ricos, o defensor da exploração e opressão, põe-se em flagrante contradição com a doutrina cristã. (...) Os padres de hoje, que combatem o comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos, pois estes não passavam de ardentes comunistas. (...) Se Cristo aparecesse na terra, atacaria com certeza os padres, os bispos e arcebispos que defendem os ricos e vivem explorando os desafortunados, como outrora atacou os comerciantes que expulsou do templo para que a presença ignóbil destes não maculasse a Casa de Deus. (...) Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois pagãos, e somos nós que trazemos aos pobres e aos explorados as novas da fraternidade e da igualdade. Somos nós quem estamos a marchar para a conquista do mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu".

Karl Kautsky, ideólogo da social-democracia, é também autor de "A origem do cristianismo", um dos mais importantes estudos sobre o cristianismo primitivo. Na obra, Kautsky retoma a ideia de que a comunidade paleocristã estruturava-se de forma muito semelhante aos ideais do comunismo proletário, identificando entre os cristãos primitivos "um selvagem ódio de classes contra os ricos." O século XX, entretanto, seria marcado pelo distanciamento cada vez maior entre os defensores do socialismo e a religião organizada, atenuado apenas por algumas iniciativas esparsas e de um reformismo bem mais abrandado, como a emergência da democracia cristã e fundação da Liga Socialista da Igreja Episcopal.

Na América Latina, o socialismo cristão influenciou o surgimento da Teologia da Libertação - uma síntese entre a teologia cristã e análises socioeconômicas enfocadas na preocupação social com os pobres e com a libertação política dos povos oprimidos, que se tornaria práxis de alguns teólogos e sacerdotes como Leonardo Boff, Júlio Lancellotti, Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo e Jon Sobrino. A Teologia da Libertação tem influenciado o desenvolvimento de movimentos análogos em outras partes do mundo, tais como a Teologia Negra nos Estados Unidos e África do Sul, a Teologia da Libertação Palestina, a Teologia Dalit na Índia e a Teologia Minjung na Coreia do Sul.

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