Roberto Marinho e o Grupo Globo

O magnata da mídia brasileira Roberto Marinho recepciona oficiais das Forças Armadas na sede do jornal O Globo. Roberto Marinho foi um dos principais articuladores e apoiadores da ditadura militar, que o recompensou com apadrinhamento e múltiplas concessões, permitindo que construísse um dos maiores impérios midiáticos do mundo - e amealhasse uma gigantesca fortuna.

Os Marinho são a família mais rica do Brasil, com um patrimônio calculado em mais de 150 bilhões de reais. Esse montante é ampliado de forma contínua graças ao lucro anual de aproximadamente um bilhão de reais gerado pelo conglomerado midiático da família - o Grupo Globo, administrado pelos filhos do patriarca - João Roberto, José Roberto e Roberto Irineu. O império dos irmãos Marinho compreende a Rede Globo, segunda maior rede de televisão comercial do mundo, e um vasto conjunto de empresas de mídia que inclui editoras, jornais, rádios, canais de TV por assinatura, gravadoras, companhias cinematográficas, portais de internet, etc. Esse poderoso conglomerado garante à família Marinho a primazia do controle sobre os produtos culturais e informações fornecidas ao público, granjeando-lhe enorme influência sobre o imaginário, o pensamento e a percepção da realidade do povo brasileiro.

Como é tradição entre os bilionários que recorrem à mitologia meritocrática para justificar fortunas questionáveis, a biografia de Roberto Marinho também foi adaptada para o roteiro do "self-made man" - o empreendedor genial e esforçado que construiu sua fortuna a partir do nada. A biografia de Marinho no portal da Academia Brasileira de Letras - da qual se tornou "imortal", mesmo possuindo uma fortuna literária medíocre -, descreve sua origem como "modesta" e "fruto do labor". Não obstante, na trajetória da família Marinho a palavra "império" tem um sentido mais denotativo do que figurado. O tetravô de Roberto Marinho era Antonio Bueno Freire, um fidalgo da coroa portuguesa, responsável pela fiscalização dos tributos de ouro em Minas Gerais. Originária da nobreza sevilhana, a família Bueno integrava a elite paulista desde o século XVI. Desse clã descendem, por exemplo, Amador Bueno, administrador da Capitania de São Vicente, e o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, infame escravizador de indígenas que recebeu dos nativos o apelido de "Anhanguera" - "diabo velho" em língua tupi, uma referência à sua brutalidade contra os cativos. Antonio Bueno Freire também possuía ligações consanguíneas com a família Rego Barros, descendentes de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal.

Seguindo outra tradição comum aos bilionários - essa geralmente escamoteada - Roberto Marinho é um herdeiro. Seu pai, Irineu Marinho, legou ao filho a propriedade de dois jornais - "A Noite", fundado em 1911, e "O Globo", lançado em 1925. Roberto Marinho assumiu a direção dos periódicos em 1931, adotando uma política editorial favorável às demandas das oligarquias agrárias e apoiando a Revolução Constitucionalista de 1932. Com a vitória das forças legalistas, Marinho passou a apoiar timidamente o governo de Getúlio Vargas, mas seguiu se opondo ao projeto desenvolvimentista, favorecendo a defesa de um programa econômico liberal baseado no modelo agroexportador e na submissão ao capital estrangeiro. Também intensificou o combate às bandeiras da esquerda e adotou um discurso veementemente anticomunista.

O Estado Novo mostrou-se um período frutífero para os negócios de Roberto Marinho, que expandiu seu conglomerado inaugurando a Rádio Globo. Apesar disso, na eleição presidencial de 1945, vencida por Eurico Gaspar Dutra, Marinho deu apoio ao brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da União Democrática Nacional (UDN), agremiação conservadora que se opunha enfaticamente ao que chamava de "populismo getulista". Na eleição de 1950, Marinho voltou a apoiar Eduardo Gomes, dessa vez derrotado por Getúlio Vargas. As Organizações Globo iniciaram então uma inflamada oposição contra o governo eleito, tentando boicotar todas as suas iniciativas. O jornal O Globo coordenou uma campanha contra a criação da Petrobrás, ao passo que a Rádio Globo tornou-se porta-voz dos principais opositores do governo, nomeadamente Carlos Lacerda, que fez reiterado uso de retórica abertamente golpista. A pressão midiática contribuiria para gerar uma grave crise política, culminando no suicídio de Getúlio Vargas.

Marinho moderou o tom durante o governo de Juscelino Kubitschek, ao qual fez uma oposição mais civilizada. A renúncia do conservador Jânio Quadros, a quem havia apoiado no no pleito de 1960, entretanto, enfureceu o magnata, uma vez que permitiu a ascensão à presidência do reformista João Goulart, apoiado pela esquerda nacionalista e por lideranças sindicais. Roberto Marinho passou então a conspirar abertamente pela derrubada de Goulart, oferecendo seus veículos para a campanha de desestabilização promovida pela oposição. Também participou da articulação do movimento antidemocrático que resultou no golpe de 1964, em conluio com parlamentares opositores, militares, empresários e representantes do governo estadunidense. Após anos conduzindo severos ataques a Goulart, os jornais das Organizações Globo retrataram a quartelada de 1964 como uma "restauração da ordem democrática". Marinho passou então à colaboração servil com a ditadura militar, que perduraria por mais de duas décadas.

A subserviência aos golpistas foi generosamente gratificada. Em 1965, apenas um ano após o golpe, Roberto Marinho começava a operar a TV Globo, criada a partir da concessão do canal 4 do Rio de Janeiro. No ano seguinte, obteve a concessão do canal 5 de São Paulo. Em 1968, ganhou a concessão do canal 12 de Belo Horizonte. Novas concessões seriam ofertadas para operar canais em Brasília e Recife, permitindo a criação de uma rede nacional. Como não possuía capital para financiar a compra de equipamentos e investir na operação simultânea de múltiplos canais, Marinho firmou um acordo de joint venture com o grupo estadunidense Time-Life. O acordo previa que a Time Life financiaria os investimentos em troca de uma participação de 49% nos negócios. A legislação brasileira, entretanto, proibia a participação estrangeira em veículos da mídia nacional. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instalada para analisar a constitucionalidade do acordo entre Globo e Time-Life e chegou a dar um parecer desfavorável à joint venture, mas o governo militar interveio para proteger o empreendimento de Roberto Marinho. A legislação seria alterada em 1967 para se adequar ao modelo de negócios da Globo.

Um episódio obscuro e até hoje envolto em controvérsia serviria para que a Rede Globo ganhasse projeção nacional a partir de julho de 1969. Em um intervalo de apenas três dias, instalações das redes de televisão Globo, Record e Bandeirantes em São Paulo foram destruídas por incêndios criminosos. O regime militar e a Globo imediatamente culparam os movimentos de esquerda pelos incêndios, mas tal acusação jamais foi comprovada. Os incêndios enfraqueceram as principais concorrentes da Globo - sobretudo a Record, com quem a emissora disputava a liderança da audiência. Ao mesmo tempo, fortaleceu a Globo, uma vez que destruiu apenas equipamentos antiquados que estavam assegurados, o que permitiu a modernização das instalações. Não por acaso, funcionários da Globo como Boni e Walter Clark comemoraram o incêndio, que rotularam como "a melhor coisa que poderia acontecer".

Com o declínio das concorrentes e a falência das TVs Tupi e Excelsior, a Globo se firmaria com maior emissora do país. Verbas publicitárias e apoio institucional da ditadura militar ajudariam a empresa a ganhar projeção nacional e dominar o mercado publicitário, ao mesmo tempo em que Marinho diversificava suas atividades, adquirido fazendas para criação de gado com subvenção do erário. O apoio incondicional à ditadura militar prosseguiria ao longo da década de 1970, com a emissora encobrindo a perseguição política, as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos nos porões do regime. O general Médici chegou a afirmar que se sentia feliz todas as noites "porque, no noticiário da TV Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz". Mesmo após o fim da censura prévia em 1976, a Globo optou por manter sua linha editorial alinhada ao discurso institucional dos militares.

Por determinação de Roberto Marinho, as Organizações Globo foram o conglomerado de mídia que mais resistiu às pressões pela redemocratização. Nas eleições pra o governo fluminense de 1982, a Rede Globo tomou parte em uma tentativa de fraude eleitoral que visava impedir a vitória de Leonel Brizola, candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em favor do candidato do regime, Moreira Franco. A fraude consistia na manipulação contábil dos votos pela Proconsult, empresa mantida por ex-colaboradores do regime militar, contratada para organizar o pleito, cujos resultados foram anunciados como legítimos pelo noticiário da Globo. O PDT descobriu a fraude ao realizar uma apuração paralela e denunciou o caso à imprensa doméstica e internacional, conseguindo garantir a posse de Brizola como governador do Rio de Janeiro. Outra manipulação exemplar da contrariedade da emissora em relação à abertura política ocorreu em janeiro de 1984, durante o comício das Diretas Já que reuniu quase meio milhão de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, protestando contra o regime. Até então, a Globo tinha ignorado todos os comícios em prol da redemocratização, mas não poderia deixar de registrar uma aglomeração tão grande na maior cidade do país. Ao cobrir o evento ao vivo, informou aos seus telespectadores que a multidão estaria reunida nas ruas para celebrar o aniversário de 430 anos de São Paulo.

Em 1989, durante a primeira eleição direta para a Presidência da República desde o fim do regime militar, a Rede Globo manipulou os trechos do último debate presidencial, visando favorecer o candidato conservador Fernando Collor de Mello (dono de uma afiliada da Rede Globo em Alagoas) e prejudicar Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). A manipulação do debate foi admitida pelo próprio diretor da Globo, Boni, e reconhecida por Fernando Collor em 2009. O episódio seria o marco inicial da cobertura jornalística antipetista da emissora, que se intensificaria enormemente nas três décadas seguintes, à medida em que o PT logrou angariar crescente apoio popular e obteve sucessivas vitórias eleitorais.

Em 1993, a rede de televisão britânica Channel Four lançou o documentário "Muito Além do Cidadão Kane". Dirigido por Simon Hartog, o documentário se dedica a analisar polêmicas e controvérsias envolvendo Roberto Marinho e a Rede Globo, enfocando nas ilegalidades, crimes e manipulação do noticiário conduzidos pela emissora, traçando um paralelo entre as ações da Globo e as do personagem Charles Foster Kane, criado por Orson Welles em 1941 para o filme "Cidadão Kane" - por sua vez uma crítica ao magnata estadunidense William Randolph Hearst, o pai da "imprensa marrom". Roberto Marinho pressionou a justiça e conseguiu proibir a exibição do documentário no Brasil. A Rede Globo também tentou comprar os direitos de exibição do documentário, visando impedir legalmente sua exibição, mas Hartog se negou a vender.

Roberto Marinho morreu em 2003, alguns meses depois de Lula assumir a presidência do Brasil. O noticiário enviesado e as tentativas de manipulação política, entretanto, se mantiveram como tradições de seu conglomerado. Em 2006, a emissora chegou a cooptar um delegado da Polícia Federal para a produção de imagens de dinheiro apreendido no âmbito do "escândalo do dossiê" - uma suposta fraude que teria sido arquitetada por petistas para conspurcar a reputação de José Serra. A exibição do dinheiro às vésperas do pleito de 2006 visava impedir a reeleição de Lula. Nesse mesmo ano, dois jornalistas da Globo, Rodrigo Vianna e Franklin Martins, foram afastados da emissora, após denunciarem a existência de ordens para barrar matérias negativas sobre o PSDB.

Em 2013, após a eclosão das Jornadas de Junho, a emissora foi alvo de gritos de protesto relembrando seu apoio à ditadura militar. Em resposta, publicou um editorial em que afirmava reconhecer como um erro o apoio editorial ao golpe de 1964. Demonstrando que a postura era meramente protocolar, a Globo deu apoio irrestrito ao golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff em 2016, utilizando-se de seus órgãos de imprensa para defender a suposta legalidade do processo de impeachment e incitando a adesão popular às manifestações antigovernamentais. A parcialidade na cobertura dos escândalos envolvendo o ex-presidente Lula, o apoio incondicional e acrítico dado à Lava Jato e a heroicização do juiz Sérgio Moro também ajudaram a erodir as garantias legais constitucionais, fomentando a guerra jurídica e a politização do judiciário.

Além das controvérsias políticas, o Grupo Globo também se envolveu em diversos escândalos comerciais e tributários. Ainda nos anos 80, a emissora foi acusada de se aliar ao então ministro das comunicações, Antônio Carlos Magalhães (ACM), para manipular os preços das ações da subsidiária brasileira da empresa japonesa NEC, então a principal fornecedora de equipamentos de telecomunicações para o governo federal. ACM interrompeu os contratos do governo com a empresa, derrubando as ações da multinacional japonesa, que foram adquiridas pela Globo. Assim que a Globo obteve o controle acionário da subsidiária brasileira da NEC, o ministro restabeleceu os contratos, multiplicando o preço das ações, que saltaram de um milhão para 350 milhões. ACM foi recompensado ganhando o direito de afiliar sua emissora de televisão na Bahia à Rede Globo. No início dos anos noventa, a Globo estabeleceu uma parceria o banqueiro Artur Falk para lançar um título de capitalização chamado "Papa-Tudo", que prometia a possibilidade de resgatar metade dos valores pagos após um ano. O título de capitalização deu um calote de 218 milhões de reais nos consumidores, nunca indenizados. Artur Falk foi preso por estelionato, mas a Globo não foi punida.

Entre os anos de 2010 e 2012, o Grupo Globo foi notificado 776 vezes por sonegação fiscal. Também foi acusado da prática de lavagem de dinheiro de 1,6 bilhão de reais desviados do Banestado e de realizar fraude contábil de 158 milhões de reais em dívidas com o banco JP Morgan - o que lhe rendeu uma multa de 730 milhões de reais. O conglomerado também foi acusado de sonegar imposto de renda, utilizando-se de um paraíso fiscal para comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. A Receita Federal chegou a preparar uma ação para cobrar multa de 615 milhões de reais da emissora, mas o processo desapareceu de sua sede no Rio de Janeiro. Um documento divulgado pelo Wikileaks em setembro de 2006 acusava a Globo de repassar à Unesco apenas 10% dos 94,8 milhões de reais arrecadados desde 1986 para a campanha Criança Esperança. Por fim, em 2016, a Globo foi implicada no escândalo "Panama Papers". A imprensa holandesa acusou a emissora de "prática reiterada de lavagem de dinheiro" por intermédio do banco Nederlandsche e de se utilizar de paraísos fiscais para ocultar a origem ilícita de recursos utilizados na compra dos direitos de transmissão da Copa Libertadores.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Othon Pinheiro, Lava Jato e Programa Nuclear Brasileiro

Explosão da Base de Alcântara

O tango e o apagamento histórico da herança cultural negra na Argentina