A Cultura Marajoara
Dentre os milhares de povos nativos que viviam no Brasil antes da chegada dos europeus, os marajoaras foram os que atingiram o maior grau de complexidade social e de sofisticação artística. O principal núcleo de povoamento da Cultura Marajoara era a Ilha de Marajó, no Pará, existindo vários núcleos secundários nas margens do Rio Amazonas. Vestígios arqueológicos apontam pra presença humana na região desde 1000 a.C. A Cultura Marajoara, especificamente, floresceu entre os anos 400 e 1650.
A Cultura Marajoara é subdividida em seis fases distintas, conforme os diferentes níveis de ocupação e desenvolvimento que o povo marajoara atingiu ao longo da história. As primeiras quatro fases são Ananatuba, Mangueiras, Formiga e Acauã. As duas últimas fases, Alta Marajoara e Aruã, correspondem ao que chamamos de Civilização dos Cacicados Amazônicos - o ápice do desenvolvimento do povo marajoara, quando constituíram uma sociedade complexa que se estendia da Foz do Rio Amazonas até o Rio Tapajós. Essa civilização chegou a agregar uma população de mais de 100 mil indivíduos, deixando vestígios de obras de engenharia e uma das mais complexas produções cerâmicas pré-colombianas. Não há consenso sobre a origem da Cultura Marajoara. Alguns arqueólogos como Betty Meggers acreditam que os marajoaras teriam migrado dos Andes e se estabelecido na Ilha de Marajó no início da Era Cristã. Outros pesquisadores, nomeadamente Anna Curtenius, defendem que a Cultura Marajoara foi formada a partir dos fluxos de grupos amazônicos locais.
Os marajoaras foram responsáveis por construir uma série de montículos (ilhas e pequenas colinas artificiais) nas regiões onde se fixaram. No sítio arqueológico de Camutins foram identificados 40 montículos - alguns de grandes dimensões, com até 20 camadas de estruturas artificiais sobrepostas. Os montículos serviam de base para a construção das residências e como barreiras para impedir a inundação sazonal. Também serviam como cemitérios e fortificações militares. As residências eram construídas com argila, estrutura de madeira e telhados de palha - semelhantes às ocas utilizadas até hoje pelos povos amazônicos, porém mais sofisticadas, com pisos rebocados. Eram multifamiliares e distribuídas num padrão oval concêntrico. Os marajoaras também foram responsáveis por construir rampas, calçadas, canais e lagos artificiais, além de executarem terraplanagem de grandes áreas.
Nos tanques e lagos artificiais, os marajoaras criavam peixes para consumo. Também desenvolveram uma agricultura em grande escala, domesticando várias espécies vegetais, conforme indicado pela descoberta de depósitos de sementes nos sítios arqueológicos - bem como pelo padrão de desgaste dos dentes das ossadas, indicativos de dieta predominantemente baseada no consumo de frutos de árvores, sementes e peixes. Tucunzeiros e açaís eram duas das espécies vegetais mais cultivadas. A tecnologia agrícola inclui machados feitos de pedra. Também desenvolveram uma espécie de grelha. A presença de artefatos líticos nos sítios arqueológicos marajoaras indica a existência de fluxos comerciais com outras sociedades complexas. Não existem fontes adequadas de rochas ígneas ou metamórficas na região, o que quer dizer que esses materiais eram importados de locais distantes. Alguns são feitos de rocha máfica verde e microcristalina - matérias-primas tipicamente utilizadas pelas civilizações mesoamericanas, como os maias e os astecas.
A produção cerâmica marajoara se destacava pelo alto grau de sofisticação técnica e artística. O volume da produção e a qualidade da cerâmica são os principais indicativos da complexidade da Cultura Marajoara, evidenciando a existência de uma escola de artesãos e de uma indústria cerâmica voltada a atender à demanda dos nativos. A cerâmica era utilizada na produção de recipientes cerimoniais e objetos de uso cotidiano, incluindo vasos, tigelas, pratos, copos, tangas, pingentes, adornos labiais e auriculares, apitos, martelos, ferramentas, etc. As peças rituais eram mais elaboradas, misturando decoração figurativa (representações antropomorfas e de animais), padrões geométricos e elementos abstratos, com predomínio da técnica de excisão.
As urnas funerárias eram particularmente ricas em elementos decorativos e sua variação - de recipientes pequenos a obras monumentais - são indicativos de algum nível de estratificação social. O imaginário feminino é um tema frequentemente presente na decoração das cerâmicas, marcadas pela representação de mulheres como deusas, criadoras, xamãs e fundadoras de linhagens. Tal característica permite especular sobre uma possível organização social baseada na descendência matrilinear. Estatuetas femininas em formato fálico, unindo os princípios masculino e feminino, também eram um tema recorrente da arte marajoara. Os marajoaras também produziam cestaria e obras em madeira, mas em função das condições climáticas da floresta amazônica a maioria desses artefatos de materiais frágeis ou orgânicos não chegou aos nossos dias.
Não há indicativos sobre o modelo de organização política dos marajoaras, mas é provável que possuíssem líderes cívico-cerimoniais como xamãs. Armas e artefatos bélicos são raros nos sítios arqueológicos marajoaras, o que poderia indicar uma sociedade relativamente pacífica. Pesquisas realizadas em ossadas, entretanto, detectaram a existência de muitos indivíduos com sinais peculiares de desenvolvimento muscular, o que sugere que existiam muitos guerreiros ou que os marajoaras eram, em geral, bem treinados para o combate. Os esqueletos também mostraram poucas patologias, indicativo de que os marajoaras tinham, em geral, uma vida mais saudável e uma dieta mais nutritiva do que os povos amazônicos pós-colonização europeia. O sistema de crenças permanece largamente desconhecido, mas é provável que envolvesse muitas figuras femininas e uma interpretação cosmológica centrada nos fenômenos naturais.
A civilização marajoara entrou em declínio por volta do ano 1300. Ainda não se sabe o que causou o colapso da sociedade marajoara. As hipóteses tradicionais apontam para epidemias ou a invasão do território marajoara por grupos rivais, como os aruãs. Indícios arqueológicos apontam que a partir do início do século XIV várias estruturas da Ilha de Marajó foram progressivamente abandonadas ou deixaram de receber manutenção. Assentamentos marajoaras ao longo do Rio Amazonas também demonstram sinais de decadência, como a queda abrupta na qualidade da produção cerâmica na última subfase da civilização. Alguns núcleos de povoamento marajoara continuaram a existir no início da colonização portuguesa. A cultura foi completamente extinta em meados do século XVII, em consequência do avanço dos colonizadores no Norte do Brasil.
Exploradores europeus encontraram os artefatos cerâmicos marajoaras entre o fim do século XVIII e o início do século XIX. As peças mais sofisticadas e de grande porte foram enviadas para museus da Europa e dos Estados Unidos, sobretudo estatuetas antropomorfas e as urnas funerárias mais suntuosas. Pesquisas sistemáticas levadas a cabo pelos arqueólogos do Museu Nacional ao longo de dois séculos permitiram que essa instituição amealhasse a maior coleção mundial de artefatos marajoaras. O incêndio de 2018, entretanto, destruiu a imensa maioria dessas peças. Coleções significativas de objetos marajoaras ainda podem ser vistas no Museu Paraense Emílio Goeldi e no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
Civilização Marajoara. Urna funerária antropomórfica. Acervo do Museu Americano de História Natural, Nova York.
Civilização Marajoara. Urna funerária. Coleção Barbier-Mueller, Genebra, Suíça.
Civilização Marajoara. Urna cerimonial monumental. Decorada com motivos geométricos e representações de seres híbridos, misturando características antropomórficas e zoomórficas. Era uma das maiores urnas marajoaras já encontradas, com 81 centímetros de altura. Acervo do Museu Nacional - destruída no incêndio de 2018.
Civilização Marajoara. Urna globular com decoração antropo-zoomórfica. Coleção Barbier-Mueller, Genebra, Suíça.
Civilização Marajoara. Vaso decorado com figura de macaco. Acervo do Museu de Arte de São Paulo.
Civilização Marajoara. Fragmento de estatueta feminina, aparentemente quebrada de propósito, talvez para impedir sua reutilização após um ritual. A figura tem os olhos em forma de escorpião, atributo recorrente nas figuras associadas a xamãs. Acervo do Museu Nacional - destruída no incêndio de 2018.
Civilização Marajoara. Prato. Coleção Barbier-Mueller, Genebra, Suíça.
Civilização Marajoara. Urna funerária antropomorfa. Acervo do Museu Americano de História Natural, Nova York.
Civilização Marajoara. Recipiente em forma de caranguejo. Coleção Barbier-Mueller, Genebra, Suíça.
Civilização Marajoara. Vaso globular decorado com motivos geométricos espiralados e ondulantes, associado ao movimento das águas. Acervo do Museu Nacional - destruído no incêndio de 2018.



















São muito bonitas, de uma verdadeira civilização sofisticada.
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