A fome no Brasil


O agricultor Chico Marcolino captura um calango - único "alimento" que ele e sua família consumiriam no dia. Apuiarés, Ceará, agosto de 1983. Entre 1979 e 1984, o Nordeste brasileiro enfrentou a pior seca do século XX. Negligenciada pela ditadura militar, a estiagem afetou 10 milhões de pessoas - mais de um terço da população da região. Em cinco anos, a seca matou 3,5 milhões de nordestinos de fome e de doenças derivadas da desnutrição. A grande maioria das vítimas eram crianças.

O flagelo da fome acompanha a história do Brasil desde a era colonial. O modelo econômico agroexportador, baseado em grandes latifúndios monocultores e na exploração de mão de obra escrava, serviu de alicerce a um país constituído sob o marco da concentração fundiária e da desigualdade social. Como consequência, a fome adquiriu o status de uma característica ingênita, de fenômeno natural, inevitável - como se fosse um elemento da paisagem que sempre esteve lá. Crises famélicas associadas às secas no semiárido nordestino remontam ao século XVIII e sempre foram marcadas por altas taxas de letalidade. A seca que atingiu a região entre 1877 e 1879, por exemplo, deixou 500 mil mortos. Já a estiagem de 1915-1917 matou 100 mil nordestinos. Não obstante, as autoridades não enxergavam as crises famélicas como assuntos de governança pública, tratando-as, na melhor das hipóteses, como fatalidades. Não raramente, os famélicos eram rotulados como uma ameaça à ordem social . Em 1932, por exemplo, quando dezenas de milhares sertanejos migraram para Fortaleza para fugir da seca no interior do Ceará, as autoridades se limitaram a encarcerá-los em campos de concentração, para mantê-los segregados e longe do contato com as classes mais abastadas da capital.

A partir da década de vinte, organizações de esquerda e o movimento operário começaram a articular ações contra a carestia. Em 1931, a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) organizou a Marcha contra a Fome, brutalmente reprimida pelo governo Vargas. Alguns anos depois, as Ligas Camponesas, criadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), passaram a exigir reforma agrária e melhores condições de vida no campo. Na década de quarenta, o sociólogo Josué de Castro tornou-se um dos primeiros acadêmicos brasileiros a realizar estudos aprofundados sobre a fome sob um prisma científico, compreendendo-a como um fenômeno político, originário das injustiças sociais e sugerindo implementação de políticas de segurança alimentar para combatê-la. Em 1959, Juscelino Kubitschek criaria a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). As reformas de base de João Goulart também contemplariam temas correlatos ao combate à fome, mas foram interrompidas pelo golpe militar de 1964.

Durante a ditadura militar, informações sobre a fome foram escamoteadas sob um discurso ufanista e sonegadas da população por meio da censura - voluntária ou não - dos meios de comunicação. As ações emergenciais ignoravam a população carente, beneficiando exclusivamente os grandes proprietários de terra com a construção de açudes e dutos d'água. Em conjunto com as políticas de precarização do trabalho adotadas pelo regime, essas práticas intensificaram o poder político dos latifundiários da região, favorecendo a chamada "indústria da seca". A Sudene foi convertida em ferramenta de apadrinhamento a serviço das oligarquias nordestinas. Paralelamente, o regime militar também desarticulou os movimentos sociais e as Ligas Camponesas, solapando as raras iniciativas de articulação de políticas públicas contra a fome e substituindo-as por um discurso genérico que vinculava a ação social à caridade.

Em 1979, o Nordeste foi atingido pela seca mais intensa registrada no século XX. A estiagem se prolongou até 1984, secando os cursos d'água intermitentes e inviabilizando as lavouras. Um terço da população nordestina foi afetada pela seca e pela carestia, que atingiu seu ápice em 1983. Nesse ano, os flagelados passaram a saquear armazéns e centrais de abastecimento da região. Um grupo de retirantes de Itapipoca ocupou o Palácio da Luz, a sede do governo do Ceará, exigindo comida. Pela primeira vez desde o início do regime militar, a seca ganhou as manchetes. As ações governamentais, entretanto, privilegiaram os grandes proprietários de terra. Segundo dados do próprio regime militar, a fome matou em cinco anos 3,5 milhões de pessoas. Estimativas de organizações independentes, entretanto, apontam cifras de até 10 milhões de mortos por fome no período.

Em meio ao processo de redemocratização e rearticulação dos movimentos sociais e agrários, o governo Sarney foi pressionado a adotar iniciativas de auxílio regular às famílias de baixa renda, criando o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC). Não obstante, a iniciativa fracassou por problemas de gestão e logística. Imbuído do discurso de que a desregulamentação do mercado e as recomendações neoliberais ditadas pelo Consenso de Washington promoveriam a emancipação da população carente, Fernando Collor desmantelou as raras ações governamentais existentes no campo da assistência nutricional, levando ao aumento da fome. Diante da crise política do governo Collor, o candidato derrotado na eleição de 1989, Luiz Inácio Lula da Silva, organizou a criação de um "governo paralelo" dedicado a discutir e elaborar projetos nacionais. A iniciativa daria origem ao Instituto da Cidadania, que entre 1993 e 1996 organizou centenas de caravanas levando parlamentares e lideranças políticas para conhecer pessoalmente os problemas pessoais e as reivindicações da população residente em áreas pobres do Brasil. O instituto também elaborou o Programa Nacional de Segurança Alimentar, apresentado a Itamar Franco, e articulou a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea).

Em 1993, teve início a campanha Ação de Cidadania contra a Fome, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que mobilizaria amplos segmentos da sociedade para combater a carestia. Mais de 30 milhões de pessoas contribuíram com a campanha, que sensibilizou a população e ajudou a sedimentar a percepção do tema da segurança alimentar como uma obrigação do Estado. Não obstante, apenas dois anos depois, o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) extinguiria o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e a o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. FHC também suspendeu a distribuição de cestas básicas no início do ano 2000. As ações, aliadas à crise econômica e o aumento do desemprego, levaram a um brutal aumento da pobreza e da fome. Até 2002, morriam em média 290 crianças de fome todos os dias - totalizando mais de 100 mil crianças mortas por desnutrição em um ano - e 36 milhões de brasileiros passavam fome.

Em janeiro de 2003, poucos dias após assumir o governo, o presidente Lula recriou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, transformando-o em um órgão diretamente subordinado à Presidência da República. Lula também lançou um programa de segurança alimentar chamado Fome Zero, seguindo projeto desenvolvido dois anos antes por José Graziano Neto, baseado em subsídios aos pequenos produtores, barateamento da alimentação, aumento da oferta de alimentos básicos e priorização do mercado interno. O governo federal também promoveu a integração de políticas emergenciais de combate à fome, criou o Cartão Alimentação para subvencionar a compra de alimentos por famílias carentes, e instituiu o Programa de Aquisição de Alimentos, que passou a priorizar compras públicas de cooperativas ligadas à agricultura familiar, sem intermédio de atravessadores.

Apenas nos dois primeiros anos, o Fome Zero beneficiou 11 milhões de pessoas em 2.369 municípios, priorizando ações na região do semiárido nordestino. Em 2004, o governo Lula implementou o Bolsa Família, que se tornaria um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, atendendo 45 milhões de pessoas - mais de um quarto da população brasileira. O programa enfrentou críticas acirradas da oposição, da imprensa e de setores conservadores da sociedade, que o rotulavam como "assistencialismo para compra de votos" e alegavam que deixaria os pobres "mal acostumados", estimulando a "preguiça". Não obstante, o programa permitiu melhora significativa das condições de vida, reduzindo a pobreza em 50,6% e a miséria em 75%. Mais de 36 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema e a subnutrição foi reduzida em 82%. A vinculação do recebimento dos benefícios à frequência escolar e vacinação das crianças também estimulou a melhora de outros indicadores sociais. Em 2011, Dilma Rousseff criou o programa Brasil Sem Miséria, um incremento do Bolsa Família que garantia complementação de renda para todos os indivíduos que ainda estavam abaixo da linha da pobreza.

Os programas transformaram o Brasil em um dos líderes mundiais da redução da pobreza entre 2001 e 2013. Em 2014, pela primeira vez na história, o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). O país também conseguiu ultrapassar com boa margem as metas estipuladas pelos Objetivos do Milênio da ONU, em prazo inferior ao previsto. Em reconhecimento aos esforços empreendidos pela erradicação da fome crônica, o presidente Lula foi agraciado com o título de "Campeão Mundial na Luta Contra a Fome" pela ONU em maio de 2010. O Brasil se tornou uma referência em políticas de combate à subnutrição e inspirou a criação de dezenas de programas similares na Ásia, na África e na América Latina.

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