Bolsonaro e a necropolítica
Um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em fevereiro de 2022 mostrou que a expectativa de vida dos brasileiros despencou durante o governo Bolsonaro, passando de 76,6 anos em 2019 para 72,2 anos em 2021. A queda foi motivada sobretudo pela mortalidade derivada da pandemia de covid-19, que ceifou quase 690.000 vidas. A expectativa de vida assinala o número aproximado de anos que os indivíduos tendem a viver. É um dos indicadores chaves da qualidade de vida em um país. A tendência de queda do indicador já havia sido assinalada na manhã de 7 de abril de 2021, quando o Portal Transparência divulgou que, pela primeira vez na história, o número de mortes registrados na Região Sudeste havia ultrapassado o número de nascimentos: 13.998 partos contra 15.967 óbitos.
Nessa mesma data, durante à noite, o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros participaram de um jantar com grandes empresários brasileiros. Não houve cobranças sobre a situação de descontrole sanitário ou sobre o fato de que o Brasil concentra 28% de todas as mortes diárias decorrentes da covid-19, mesmo respondendo por apenas 2,7% da população mundial. Ao contrário: as falas de Bolsonaro e de seu ministeriado foram efusivamente aplaudidas pela claque de banqueiros, barões da mídia, donos de construtoras e industriais.
Não é difícil compreender o apoio de bilionários e multimilionários a Bolsonaro. Enquanto a classe trabalhadora vê o seu poder de compra derreter e é forçada a substituir carne vermelha por ovo, os ultra-ricos aumentam sua fatia na concentração de renda nacional com uma voracidade espantosa. Ao mesmo tempo em que a Rede PENSSAN divulgava um relatório mostrando que 55,2% dos brasileiros encontram-se em situação de insegurança alimentar e 19,1 milhões de pessoas estão passando fome, a Forbes publicava seu ranking atualizado, mostrando que apenas no primeiro trimestre de 2021, o Brasil ganhou 11 novos bilionários. O patrimônio dos super-ricos também aumentou mais de 30% durante a pandemia.
Na imprensa liberal, não faltam os "ingênuos de ocasião" - formadores de opinião "arrependidos", que alegam que "não tinham como saber" que Bolsonaro era Bolsonaro e, cinicamente, tentam esconder sob a máscara do clamor civilizatório sua própria responsabilidade no processo de destruição da sociedade brasileira. Afinal, Bolsonaro nunca negou que era Bolsonaro. Elogios à ditadura, à tortura e à execução sumária sempre foram elementos presentes na sua retórica. Em uma entrevista concedida em 1999 à TV Bandeirantes, o ex-capitão do exército disse explicitamente que era a favor de fomentar uma guerra civil no Brasil para "matar uns 30 mil". Durante uma coletiva de imprensa datada junho de 2017, Bolsonaro reafirmou com todas as letras seu ideário: "minha especialidade é matar, não é curar ninguém."
A trajetória parlamentar do ex-capitão ao longo de quase três décadas também nunca impediu uma leitura correta sobre a sua mentalidade eugenista e sua obsessão pelo controle demográfico. O então deputado apresentou ao menos três projetos visando instituir a esterilização de pobres no Brasil. "Pobre no Brasil só serve pra votar", afirmou em uma ocasião." Em outro discurso, criticando o "crescimento populacional exagerado", reclamou do fato de o país ser muito populoso: "Não tem lugar para deitar na praia. É gente demais! Temos que colocar um ponto final nisso se quisermos produzir felicidade em nosso país."
O cinismo de parte da imprensa liberal consiste justamente na admoestação acrítica que tenta estabelecer uma suposta incompatibilidade entre apoiar Bolsonaro pela "agenda econômica" e relevar sua natureza protofascista. É o contrário: a elite apoiou Bolsonaro justamente porque sua agenda era a que conciliava liberalismo econômico e autoritarismo de extrema-direita. A aliança entre liberais e o protofascismo militarista não é uma novidade. Ela sempre ressurge de forma mais explícita quando o capitalismo passa por uma crise econômica ou se vê ameaçado pelo avanço de iniciativas potencialmente danosas aos interesses da plutocracia. Foi o que ocorreu na ascensão do nazifascismo europeu. Foi o que voltou a acontecer durante as ditaduras militares da Guerra Fria. É o que está acontecendo agora diante das sucessivas crises iniciadas em 2008.
O ingresso de Bolsonaro na política ocorreu em paralelo com um processo de revalorização das ideias de controle populacional defendidas pelo economista britânico Thomas Malthus. As crises cíclicas do capitalismo são sempre acompanhadas do aumento exponencial do exército industrial de reserva - isso é, a parcela da força de trabalho que excede as necessidades da produção, que é mantida permanentemente desempregada como forma de reduzir os salários e desestimular a organização da classe trabalhadora. Quando o exército industrial de reserva excede o número ideal, há a proliferação de problemas sociais e de gastos do erário para a contenção de eventuais rupturas. A solução encontrada pelo capitalismo é sempre a destruição das forças produtivas, para inibir quaisquer riscos às relações de produção. Esse processo é visível, por exemplo, nas grandes guerras do século XX e na adoção de políticas públicas que possibilitem e naturalizem a morte de pessoas.
Desde a década de 1970, relatórios elaborados pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) propunham a adoção de políticas de controle populacional em países do "Terceiro Mundo". Posteriormente, o governo estadunidense adotou medidas de redução da rede de proteção social dentro de seu próprio território - o que levou, por exemplo, à estagnação da expectativa de vida dos seus cidadãos. Desde 2010, a expectativa de vida dos estadunidenses apenas regride. Embora o progresso material, científico e tecnológico possibilitem que o ser humano viva cada vez mais, a plutocracia capitalista, aparentemente, decidiu que a longevidade não deve ser um atributo ao alcance das massas.
Nas últimas décadas, essa agenda anti-vida era dissimulada pela retórica de defesa dos "direitos humanos", da "democracia" e da "liberdade", enquanto se promovia a concentração de riquezas, a exclusão social, a precarização do trabalho e o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. O acirramento da crise econômica pós-2008 levou à substituição gradual dessa estratégia pelo modelo de governança abertamente autoritário, embasado no apoio popular angariado por meio da retórica "antissistema". Bolsonaro é um dos maiores representantes dessa forma alternativa de governança do capitalismo global e tem se mostrado exímio no manejo do controle social e populacional - isso é na instrumentalização da necropolítica.
O termo necropolítica foi cunhado em 2003 pelo historiador camaronês Achille Mbembe e pode ser compreendido como o uso do poder político e social para gerenciar arbitrariamente as oportunidades de vida e morte dentro do sistema capitalista. É um processo de subversão da função protetora e civilizatória do Estado, que abandona os princípios iluministas em favor da gestão das políticas de vida e morte, definindo quais e em que condições algumas pessoas podem viver e quais são as outras pessoas que devem morrer.
Desde que assumiu o poder em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro tem avançado de forma sistemática a agenda política da morte. A facilitação do acesso às armas, a incitação para que grileiros e fazendeiros usem força letal contra movimentos sociais ou povos indígenas, a tentativa de aprovar o excludente de ilicitude, dando proteção legal ao extermínio da população marginalizada pelas forças policiais e militares, a flexibilização das leis de trânsito, a aprovação recorde de agrotóxicos - muitos dos quais banidos no resto do planeta por serem altamente prejudiciais - são todos elementos pertencentes a uma política deliberada de extermínio de amplos setores da população brasileira. Ao mesmo tempo, essas políticas são complementadas pelo austericídio e pelas macabras medidas ultraliberais conduzidas por Paulo Guedes, que estão levando ao aumento desenfreado do custo de vida, das contas de consumo e do preço dos alimentos, ao mesmo tempo em que o poder de compra é reduzido - submetendo dezenas de milhões de brasileiros ao flagelo da miséria e da fome.
Ao contrário do que apregoa a imprensa liberal, não é por incompetência que o governo Bolsonaro foi negligente com o combate à pandemia de covid-19. A recusa em comprar vacinas para imunizar a população, o incentivo à aglomeração, o desrespeito das medidas de controle epidemiológico e distanciamento social, a pressão pela reabertura dos comércios, o fomento ao conspiracionismo, ao obscurantismo e anticientificismo, são todas medidas calculadas como parte de um esforço de implementação de uma agenda genocida. A morte é naturalizada nos discursos governamentais, que insistem no apelo do conceito da "sobrevivência dos mais aptos". A responsabilidade sanitária vira "frescura", "mimimi", os que se protegem viram "maricas" e a vida dos cidadãos é tratada como algo descartável. Mesmo as ações do governo que se apresentam como atos de responsabilidade social são pré-condicionadas a esse projeto genocida. É o caso da chantagem de Guedes de condicionar o pagamento do auxílio emergencial a uma reforma que leve ao desmonte dos sistemas públicos de saúde e educação.
Bolsonaro não é a doença - é um sintoma. É o resultado da transformação de um modelo de capitalismo que em algum momento tentou conciliar sua agenda econômica perversa com a dissimulação da defesa dos direitos humanos e civis e um falso discurso sobre a busca de limites éticos, mas que se vê tentado agora a abandonar essa pactuação em prol da construção de modelo de sociedade distópica alinhando autoritarismo fascista e ultraliberalismo selvagem. O Brasil parece ser um dos principais laboratórios desse modelo e a pandemia é um dos instrumentos utilizados para consolidá-lo. E a julgar pelos aplausos efusivos do empresariado brasileiro a Bolsonaro, a elite brasileira parece ter aprovado a experiência.
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