Necropolítica, pandemia e expectativa de vida


O governo dos Estados Unidos divulgou em agosto de 2022 a expectativa de vida registrada no país no ano anterior. O indicador — responsável por assinalar o número aproximado de anos que os indivíduos nascidos num mesmo período tendem a viver — apresentou uma queda abrupta, passando de 78,8 anos em 2019 para 76 anos em 2021. Com isso, os Estados Unidos se tornam a nação de menor expectativa de vida no grupo das nações desenvolvidas. A expectativa de vida dos estadunidenses é inferior a de países como Cuba, Peru e Colômbia e semelhante a de nações como Equador ou Tailândia. A queda abrupta em 2020 é um reflexo do desempenho pífio do país diante da pandemia de COVID-19. Os Estados Unidos lideram a lista mundial de números absolutos de óbitos decorrentes da doença, com mais de um milhão mortes. Não obstante, a pandemia parece ter apenas acelerado uma tendência que já era observável ao longo da última década. A expectativa de vida dos estadunidenses não cresce desde 2010. Ao contrário: de 2014 em diante, o país tem registrado sucessivas quedas na esperança média de vida ao nascer.

A expectativa de vida é um dos mais importantes indicadores da qualidade de vida em um país ou região. Quanto maior o acesso dos habitantes de uma determinada localidade a serviços de saúde, saneamento básico, nutrição adequada e apoio ao desenvolvimento humano e quanto mais baixos os índices de violência, criminalidade e poluição, maior tende a ser a expectativa de vida. Nações como Japão e Suíça possuem expectativas de vida de mais de 80 anos, enquanto países como Lesoto tem indicadores em torno de 50 anos. A mesma diferença pode ser observada em contextos de disparidade social dentro de um mesmo país. Nos bairros nobres de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida pode ser até 23 anos maior do que nos distritos periféricos. Malgrado as disparidades, os avanços da ciência e da medicina, a consolidação dos sistemas de saúde pública e campanhas de imunização, o controle e erradicação de epidemias e a expansão do saneamento básico e das redes de proteção social permitiram o aumento significativo da expectativa de vida da humanidade como um todo ao longo do século XX. Na virada para o século XXI, pululavam na mídia as matérias sobre como a biomedicina e as pesquisas em genética logo tornariam a existência de centenários um fato corriqueiro.

Tudo indica, entretanto, que faltou combinar com a plutocracia. Ao mesmo tempo em que o progresso científico e tecnológico e as condições materiais possibilitam o aumento exponencial da longevidade da espécie humana, observa-se um processo de revalorização das ideias de controle populacional defendidas pelo economista britânico Thomas Malthus nas ditas "democracias" liberais burguesas. A solução para o crescimento exponencial do exército industrial de reserva — isso é, a parcela da força de trabalho que excede as necessidades da produção, mantida propositalmente desempregada para reduzir os salários e desestimular a sublevação da classe operária — aparentemente será, como em outros momentos da história, o estímulo à eliminação física das forças produtivas.

O desmantelamento do Estado de bem estar social e o ataque às redes de proteção social (acelerados desde a crise dos países socialistas no fim dos anos oitenta e a dissolução da União Soviética), a privatização dos sistemas públicos de saúde, as políticas neoliberais que intensificam a concentração da riqueza, a exclusão social e a precarização do trabalho tem levado os países capitalistas a uma situação paradoxal: no mesmo momento histórico que representa o ápice das condições materiais e tecnológicas para garantir a longevidade da população, a expectativa de vida das massas parou de crescer — e tem começado a diminuir. Em quase todos os países da Europa Ocidental observa-se a estagnação da expectativa de vida. E nos epicentros do ideário neoliberal, Estados Unidos e Reino Unido, a expectativa de vida está caindo de forma acelerada. A elite, aparentemente, decidiu que longevidade não será um atributo ao alcance das massas, mas outra "commodity" acessível apenas aos que podem pagar pelo luxo de viver mais.

O Brasil, país onde a expectativa de vida saltou de 33,4 anos em 1900 para 76,6 anos em 2019, registrou em 2022 a queda mais acentuada da expectativa de vida em sua história. O indicador caiu 4,4 anos, sendo reduzido a 72,2 anos. Somando quase 700 mil mortos em decorrência da pandemia de COVID-19, o país passou a regsitrar desde março de 2021 mais mortes do que nascimentos, resultando em decréscimo populacional. Não seria espanto se notícia mórbida, entretanto, fosse comemorada pelo governo de Jair Bolsonaro, personalidade que ascendeu politicamente defendendo leis eugenistas e medidas de controle populacional ao longo de décadas. Em um discurso proferido quando ainda era deputado, Bolsonaro asseverou: "Não tem lugar para deitar na praia. É gente demais! Temos que colocar um ponto final nisso se quisermos produzir felicidade em nosso país." Entre discursos inflamados sobre a inutilidade dos pobres, a necessidade de "matar uns 30 mil" e projetos de lei visando estabelecer a esterilização forçada de beneficiários de programas sociais, Bolsonaro foi consolidando a ideia de que a única solução para o Brasil era a morte.

Alçado à presidência, Bolsonaro tratou de mostrar que seu discurso não era bravata, avançado a agenda política da morte de forma sistemática. Facilitação do acesso às armas, incitação do uso da violência contra povos indígenas, quilombolas e movimentos sociais, tentativas de aprovar excludente de ilicitude pra dar proteção legal ao extermínio da população marginalizada pelas forças policiais e militares, flexibilização das leis de trânsito, aprovação recorde de agrotóxicos banidos no resto do planeta são todos elementos pertencentes a uma política deliberada de extermínio de amplos setores da população brasileira. Ao mesmo tempo, essas políticas foram complementadas pelo austericídio e macabras medidas ultraliberais conduzidas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, que levaram ao aumento desenfreado do custo de vida, das contas de consumo e do preço dos alimentos, ao mesmo tempo em que reduziu o poder de compra - submetendo 33 milhões de brasileiros ao flagelo da miséria e da fome.

Nesse contexto, a pandemia de COVID-19 apresentou-se ao governo Bolsonaro como uma dádiva, celebrada e potencializada de todas as formas possíveis. A negligência no combate não foi acidente - e sim método. A recusa em comprar vacinas para imunizar a população, o incentivo à aglomeração, o desrespeito às medidas de controle epidemiológico e distanciamento social, a pressão pela reabertura dos comércios, o fomento ao conspiracionismo, ao obscurantismo e anticientificismo, foram todas medidas calculadas como parte de um esforço de implementação de uma agenda genocida. A morte foi naturalizada nos discursos governamentais, que insistiam no apelo do conceito da "sobrevivência dos mais aptos". A responsabilidade sanitária virou "frescura", "mimimi", os que se protegiam viraram "maricas" e a vida dos cidadãos foi tratada como algo descartável. Mesmo as ações do governo que se apresentavam como atos de responsabilidade social foram pré-condicionadas a esse projeto genocida. É o caso da chantagem de Guedes de condicionar o pagamento do auxílio emergencial a uma reforma que levasse ao desmonte dos sistemas públicos de saúde e educação.

No dia 27 de abril de 2021, durante uma reunião com o Conselho de Saúde Suplementar, o ministro Paulo Guedes reclamou publicamente sobre o aumento da expectativa de vida no Brasil. "Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 anos. Não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar", afirmou Guedes, assumindo considerar como um problema o fato de brasileiros estarem vivendo mais tempo. Solange Vieira, economista indicada por Guedes para comandar a Superintendência de Seguros Privados, foi ainda mais explícita ao comentar sobre a pandemia: "É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário".

Cínica, a imprensa liberal tentou fingir que o genocídio perpetrado por Bolsonaro foi fruto de imperícia, incompetência ou parvoíce, quando todos as evidências indicam que Bolsonaro está apenas aplicando experimentalmente no Brasil um modelo de governança adequado ao atual estágio do capitalismo. Abandonando a estratégia de dissimular a perversidade do neoliberalismo com a narrativa da defesa dos direitos humanos e da humanização do capital, a plutocracia capitalista parece estar disposta a investir na construção de verdadeiras sociedades distópicas governadas pelo autoritarismo fascista aliado ao ultraliberalismo selvagem.

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