O Massacre do Sítio do Caldeirão
Sobreviventes do Massacre do Sítio do Caldeirão, em Crato, Ceará, são cercados por militares. Em 11 de maio de 1937, a comunidade nordestina, acusada de "subversão comunista", foi dizimada por fuzilamentos e bombardeios aéreos conduzidos pelo Exército Brasileiro.
Desde 1926, a Fazenda de Santa Cruz do Caldeirão, localizada na área rural de Crato, abrigava uma comunidade de romeiros, flagelados da seca e camponeses. O líder da comunidade era um beato chamado José Lourenço, protegido de Padre Cícero. O próprio sacerdote havia intermediado a concessão da fazenda, a princípio para abrigar os trabalhadores rurais expulsos de uma propriedade rural vizinha que fora vendida. Padre Cícero passou a enviar aos cuidados de José Lourenço os retirantes que buscavam suas bênçãos em Juazeiro do Norte, o que levou ao rápido crescimento da comunidade.
Sob a liderança de José Lourenço, a fazenda funcionava como uma sociedade comunal, sustentada pela cooperação mútua e repartição igualitária da produção. Os moradores produziam quase tudo que necessitavam. Plantavam frutas, cereais e verduras, fabricavam machados, enxadas, foices, roupas e panelas. Os frutos do trabalho eram divididos conforme as necessidades de cada um e a produção excedente era comercializada com as comunidades externas. O dinheiro proveniente das vendas era empregado na compra de remédios, querosene e insumos. Cada família tinha sua própria casa e os órfãos eram criados como afilhados do beato. A fazenda também contava com sua própria igreja e um cemitério, igualmente construídos pelos moradores.
A notícia de que existia um "paraíso dos pobres" nos arredores de Crato, onde havia água, comida e abrigo assegurados para todos, começou a se difundir pela região. Durante a grande seca de 1932, a fazenda recebeu uma grande leva de retirantes, o que fez dobrar sua população. Em seu ápice, a comunidade chegou a abrigar mais de 2.000 pessoas. Testemunhando casos de trabalhadores que abandonaram suas ocupações árduas para ir morar na Fazenda do Caldeirão, os proprietários rurais começaram a se queixar. A comunidade religiosa passou a ser vista como um estorvo pela elite de Crato e como uma ameaça ao modelo de exploração dos camponeses nos latifúndios. Embora fosse analfabeto e penitente, José Lourenço foi vilanizado como um perigoso líder comunista que poderia articular uma rebelião e atentar contra a ordem pública.
Assim, em setembro de 1936, policiais militares invadiram o povoado atrás de José Lourenço. O beato conseguiu evitar os policiais, escondendo-se nas matas da Serra do Araripe. A polícia incendiou as casas, saqueou os bens e expulsou os moradores do local. Os moradores, entretanto, retornaram para a fazenda aos poucos e começaram a reconstruir a comunidade. Algumas semanas depois, o governo cearense enviou um novo grupo de onze policiais liderados pelo capitão José Bezerra para espionar a comunidade e procurar pelo beato. Quando os policiais foram descobertos, entraram em confronto com os camponeses. O tumulto culminou na morte do capitão, de três praças e de cinco moradores da fazenda.
A morte dos soldados serviu de estopim para a repressão brutal. A imprensa cearense passou a publicar boatos de que "fanáticos" planejavam "invadir a cidade de Crato para destruir e matar todos os moradores". O governador do Ceará, Francisco de Menezes Pimentel, acionou o governo de Getúlio Vargas, afirmando que a cidade abrigava um núcleo de "subversão comunista". Vargas, por sua vez, incumbiu seu Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, de coordenar uma operação militar para "neutralizar" a suposta ameaça.
Na madrugada de 11 de maio de 1937, 200 soldados do Exército Brasileiro munidos de fuzis e metralhadoras atacaram a comunidade, massacrando os moradores. Dois aviões também sobrevoaram a fazenda lançando bombas. Os moradores que não morreram nos fuzilamentos e bombardeios foram caçados e degolados pelos soldados e por jagunços emprestados pelos coronéis da região. José Lourenço sobreviveu ao massacre e conseguiu fugir para Pernambuco, onde morreu alguns anos depois. Os relatos oficiais apontam que 400 pessoas teriam sido assassinadas no massacre, mas outras estimativas apontam mais de mil mortes. Os corpos nunca foram localizados, mas acredita-se que tenham sido enterrados em uma vala comum na região da Serra do Cruzeiro.
O Exército Brasileiro não guardou registros da operação e até hoje nega que o massacre tenha ocorrido. Em 2008, a ONG SOS Direitos Humanos entrou com uma ação civil pública contra o governo do Ceará e o Exército Brasileiro, solicitando que as autoridades revelassem o local da vala comum e procedessem à exumação dos corpos e à indenização dos familiares dos mortos e dos sobreviventes remanescentes, além de incluir o massacre na história oficial. A ação, entretanto, foi extinta sem julgamento de mérito pelo juiz da 16ª Vara Federal de Juazeiro do Norte.
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