Voyeurismo do flagelo: João Doria e o turismo da seca no Nordeste
A década de oitenta foi um período bastante difícil para a população do Nordeste. Entre 1979 e 1984, a região foi afetada pela pior estiagem do século XX, que causou mais de 3,5 milhões de mortes por fome e desnutrição e obrigou inúmeros sertanejos a abandonarem suas terras. Apenas três anos após o fim da grande seca, uma nova estiagem voltou a afligir a região. Uma reportagem do jornal Estado de S. Paulo publicada em 3 de junho de 1987 anunciava que "é grave a situação provocada pela seca na região Nordeste do País. Alguns governadores estão criando planos de emergência para socorrer os flagelados, que, desesperados, saqueiam estabelecimentos comerciais e municipais, na tentativa de matar a fome e alimentar suas famílias".
O Brasil estava em meio ao processo de redemocratização, tendo seu primeiro mandatário civil em décadas - José Sarney, alçado ao poder como vice de Tancredo Neves em eleição indireta. Malgrado os vários problemas que marcaram sua gestão, Sarney atuou de forma mais responsável nas ações de combate à seca em relação ao período da ditadura militar. O governo federal havia ampliado em mais de 50% os investimentos em irrigação, o que ajudou a reduzir os impactos negativos da seca de 1987 sobre a produção local e atenuar o problema da carestia. O Congresso Nacional também criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para avaliar os prejuízos e problemas causados pela estiagem e elaborar ações de emergência.
Alguns nomes do governo Sarney, entretanto, levaram muito a sério o chavão do empreendedorismo de palco sobre "transformar crise em oportunidade". O empresário João Doria, filho do deputado João Agripino da Costa, havia sido indicado por Sarney para assumir a presidência da Empresa Brasileira de Turismo, ou Embratur - estatal responsável por implementar projetos e ações para incremento do turismo no Brasil. A gestão de Doria à frente da Embratur foi marcada por polêmicas e escândalos. Doria criou, por exemplo, uma série de campanhas publicitárias que visavam promover o turismo sexual no Brasil, vinculando peças publicitárias com alto teor erótico e intensa exposição do corpo feminino no exterior. Doria também foi acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar 6,5 milhões de cruzeiros dos cofres estatais entre os anos de 1987 e 1988.
Em 30 de junho de 1987, durante uma visita a Fortaleza, capital do Ceará, Doria participou de um debate ao lado do governador do estado, Tasso Jereissati, e cerca de 100 empresários. O evento foi sediado no Salão de Convenções do Esplanada Praia Hotel. Durante o debate, os jornalistas perguntaram a Doria se a Embratur tinha algum projeto para auxiliar a combater os efeitos da seca. Foi então que o presidente da estatal deu uma sugestão que deixou o público local incrédulo. Doria afirmou que o governo deveria diminuir a verba gasta com irrigação e abandonar os projetos de combate à seca, realocando esses recursos na promoção do turismo na região. "A Caatinga nordestina poderia ser um ponto de visitação turística e gerar uma fonte de renda para a população sofrida da área", afirmou Doria, complementando que "de cada 100 projetos turísticos na região, apenas quatro deixam de garantir retorno, enquanto de 100 projetos de irrigação, 75 dão resultados negativos e somente 25 asseguram rentabilidade".
Sem acreditar no que ouviam, os jornalistas pediram ao presidente da Embratur que escrevesse o que tinha acabado de vocalizar. Doria concordou e voltou a enfatizar a "genialidade" da sua ideia, que permitiria "transformar a seca num ponto positivo". Segundo ele, a população do eixo Rio-São Paulo, que só conhecia a seca através da televisão e da imprensa, tinha o "direito de conhecer a riqueza e a pobreza do Brasil" e excursões de turistas poderiam ajudar os moradores locais a, por exemplo, obter uma nova fonte de renda vendendo artesanato. Doria chegou a traçar paralelos com o registro fotográfico e jornalístico do garimpos. "Em Serra Pelada, onde milhares de garimpeiros vivem em condições subumanas, essa garimpagem já se transformou em um ponto de visitação turística. Lá existem até especialistas em fotografia daqueles homens, transportando sacos de areia nas costas, em busca de ouro", afirmou na ocasião o futuro governador de São Paulo.
A proposta causou indignação entre os nordestinos. A radialista Adisia Sá, responsável por apresentar o programa "Debate do Povo", chamou Doria de "dândi do society transplantado para o debate público" e prometeu que iria formar um grupo de nordestinos para receber no braço a primeira agência de viagens que chegasse em excursão para apreciar a seca e obrigá-los a retornar para São Paulo. Questionado sobre o assunto, o ministro do interior, Joaquim Francisco Cavalcante, ele mesmo nordestino, afirmou "preferir acreditar que essas declarações não existiram". Tasso Jereissati chamou a declaração de "infeliz", mas disse que as palavras de Doria foram deturpadas. Barros Pinho, secretário de Turismo do Ceará, foi a única autoridade cearense a concordar com a ideia, que classificou de "criativa".
O plano de Doria também foi fortemente criticado na imprensa local. A edição de outubro da revista Agropecuária Tropical publicou o texto em destaque na imagem, afirmando que "a morte pela subnutrição, pela fome e sede dos nordestinos pode ser mais uma opção para os turistas da região centro-sul do país", sublinhando a sugestão de Doria de que "verbas da irrigação deveriam ser reduzidas para aumentar as de turismo para exibir os flagelados da seca porque os habitantes do eixo Rio-São Paulo só conhecem a seca através da imprensa" e que "em vez de empregar o dinheiro do governo para financiar a produção, empregaria tal verba para que os turistas, em ônibus refrigerados e regados a whisky, possam se distrair vendo as crianças esqueléticas tomando lama em lugar de água". Diante da repercussão negativa, Doria abandonou seu projeto.
Comentários
Postar um comentário