"O Anjo Caído", de Alexandre Cabanel


"O Anjo Caído", obra do pintor francês Alexandre Cabanel executada em 1847. Acervo do Museu Fabre, Montpellier, França. A obra é uma das mais conhecidas representações de Lúcifer na história da arte, notabilizando-se pelo olhar expressivo e pela humanização do controverso personagem.

Alexandre Cabanel tinha 24 anos de idade quando pintou "O Anjo Caído". O jovem era então um dos talentos mais promissores da Escola de Belas Artes de Paris, produzindo obras de grande beleza e refinamento, estritamente conformadas aos cânones do neoclassicismo acadêmico. Em 1844, Cabanel expôs pela primeira vez no Salon de Paris e atraiu de imediato a admiração do público. Os elogios efusivos alimentaram a pretensão de Cabanel de conquistar o "Prix de Roma" — um prestigioso concurso para estudantes de arte organizado pela Academia de Belas Artes da França, que premiava o vencedor com uma bolsa de estudo em Roma.

O júri do concurso, entretanto, não estava tão impressionado com o talento de Cabanel. Em 1843, o pintor fora eliminado já na segunda fase da competição. No ano seguinte, apresentou a tela "Cincinato Recepcionando os Embaixadores de Roma", terminando em sexto lugar. Na terceira tentativa, obteve ótimo desempenho e avançou para a etapa final, mas terminou em segundo lugar com seu "Cristo no Pretório", desbancado pela tela de François-Léon Benouville. Apesar disso, o pintor conseguiu obter a bolsa de estudo em Roma, beneficiado pela transferência do prêmio de uma categoria que ficara sem vencedor naquele ano.

Na Itália, Cabanel se dedicou a estudar a arte renascentista, experiência que o levou a clarear sua paleta e a privilegiar a precisão anatômica. Também se ocupou de executar as tarefas didáticas, produzindo seus primeiros envios — obras que os bolsistas remetiam para a França, a fim de serem avaliados pela Academia. Em 1846, Cabanel enviou o quadro "Orestes", representando o mitológico rei micênico atormentando pelas Fúrias, como punição pelo assassinato de Clitemnestra. A recepção foi péssima. Os avaliadores detestaram a obra, rotulando-a como "uma composição inepta e superdimensionada".
A crítica incisiva dos juízes e os sucessivos fracassos no concurso da Academia levaram Cabanel a questionar sua produção. O pintor se convenceu de que suas obras, embora tecnicamente perfeitas, careciam de emoção e expressividade. Concluiu, então, que precisava arriscar mais, buscando algum grau de liberdade artística, mas sem se desviar dos cânones acadêmicos. É nesse contexto de crise criativa que surge "O Anjo Caído".

A obra representa Lúcifer, identificado na teologia cristã como um dos querubins mais importantes do séquito divino, dotado de beleza, inteligência e enorme poder. Absorto por sua própria grandiosidade, Lúcifer se deixou seduzir pelo orgulho e pela vaidade. Acreditando ser digno da mesma honra e glória que pertenciam a Deus, o querubim tentou incitar os Exércitos Celestiais à insurreição, mas fracassou. Como castigo, Lúcifer foi expulso do Céu junto com suas hostes rebeldes.

Cabanel representou Lúcifer logo após sua expulsão. O anjo caído é retratado escorando-se sobre um rochedo. Embora reclinado, ele não está repousando. A postura é rígida e os músculos estão contraídos. Sua figura é escultural e idealizada, lembrando os heróis da antiguidade clássica — ou mesmo a pose de Adão no célebre afresco de Michelangelo na Capela Sistina. A luminosidade do cenário ao fundo contrasta com os tons escuros do primeiro plano — excetuando-se a luz irradiada sobre o corpo de Lúcifer. A gradação ecoa nas asas do anjo caído: as penas, mais claras na parte superior, vão escurecendo ao se aproximarem do solo. É uma referência à metamorfose do personagem, que deixa de ser o "portador da luz" e se converte em "príncipe das trevas".

Lúcifer tenta cobrir seu rosto com o braço, mas o gesto evidencia ainda mais o sentimento de vergonha e a dramaticidade de sua expressão facial. Seus olhos vermelhos e marejados indicam uma miríade de sentimentos: ódio e tristeza, mágoa e humilhação, revolta e dor. Anunciam ao mesmo tempo o desejo de vingança, prenunciando a persistência da rebelião. Os cabelos avermelhados, desgrenhados pelo vento, sugerem o movimento errático de uma chama. No céu, uma legião de anjos celebra a derrota de Lúcifer. Ao contrário do anjo degredado, eles estão vestidos com túnicas — a nudez de Lúcifer, tal qual a de um recém-nascido, parece evocar a gênese de um novo ser.

A característica mais evidente na obra é representação humanizada de Lúcifer. Contrariando a tradição iconográfica, o anjo caído não é retratado como um monstro, mas como um ser de feições humanas, belo, forte e atraente. O enfoque nos sentimentos externados pelo personagem torna difícil associá-lo à personificação do mal. Ao contrário: sua figura transmite vulnerabilidade, fazendo com que pareça acessível, facilitando a conexão empática com o observador. É fácil reconhecer e se identificar com as emoções expressas na obra — ao ponto de quase gerar compaixão pela figura retratada. A comparação entre a versão final de "O Anjo Caído" e o estudo preliminar da obra mostram que o autor teve o cuidado de refazer a composição para exibir a expressão facial do anjo, facilitando a conexão com o espectador.

A humanização de Lúcifer é baseada no poema épico que inspirou a obra — "Paraíso Perdido", publicado por John Milton em 1667. O poema descreve a rebelião liderada por Lúcifer sob uma perspectiva humanizada, privilegiando o enfoque da narrativa a partir do ponto de vista dos anjos rebeldes, buscando associá-los à natureza transgressora dos homens. A representação física de Lúcifer, por sua vez, embora pouco usual na estética protomoderna, tem fundamentação bíblica (Ezequiel, 28:12-17): "Tu eras o modelo da perfeição, repleto de saber e magnífico em beleza. (...) Teu coração tornou-se altivo e soberbo por causa da tua impressionante formosura, e corrompeste a tua sabedoria por conta do teu esplendor e da tua fama". É possível que Cabanel quisesse aludir à capacidade manipulativa de Lúcifer ou ilustrar a natureza sedutora da própria tentação.

"O Anjo Caído" foi a aposta mais ousada feita por Cabanel em toda sua carreira, mas a tentativa de impressionar a Academia não funcionou. A obra causou estranheza e foi duramente criticada pelos avaliadores, que consideraram "o movimento incorreto, o desenho impreciso e a execução deficiente", além de reprovarem estética da obra, julgando seu estilo "excessivamente romântico". Além disso, nenhum estudante da Academia havia produzido uma obra que tivesse Lúcifer como tema central — que dirá um Lúcifer tão humano e tão belo. Indignado com as críticas, Cabanel escreveu uma carta ao seu amigo, Alfred Bruyas, externando sua frustração: "Essa é a recompensa que eu ganho após todo o trabalho que tive para não apresentar uma obra medíocre".

Ironicamente, o Lúcifer da obra de Cabanel revelaria mais autorreferências sentimentais do que o autor poderia supor. Mas, ao contrário do anjo caído, Cabanel não se insurgiu contra a Academia, preferindo a conformidade e a resignação. O artista seria recompensado décadas mais tarde, firmando-se como influente professor na Escola de Belas Artes e mais proeminente representante do estilo pompier. "O Anjo Caído", por sua vez, se converteria em uma pintura emblemática do academicismo oitocentista, influenciando obras posteriores e demonstrando o fascínio atemporal daquele que se consagraria como um dos olhares mais marcantes da história da arte.

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