"A Redenção de Cam", enbranquecimento e eugenia na Primeira República
Pintada poucos anos após a abolição da escravatura, "A Redenção de Cam" evidencia o esforço da elite brasileira em reafirmar sua hegemonia no ordenamento político e social do Brasil. Buscando criar uma sociedade que emulasse a Europa e que estivesse estruturada segundo o ideário da supremacia branca, o governo brasileiro instituiu uma política nacional de branqueamento, financiando a vinda de milhões de imigrantes europeus e fomentando a miscigenação como meio de "diluir" e eliminar gradualmente a presença de negros na população. Esse mesmo processo ocorreu em outros países da América Latina — nomeadamente na Argentina, que recebeu mais de 6 milhões de imigrantes europeus entre o fim do século XIX e o início do século XX.
O pintor espanhol Modesto Brocos foi um dos milhões de europeus que imigraram para o continente americano no século XIX. Inicialmente radicado na Argentina, Modesto Brocos se mudou para o Brasil em 1872, passando a trabalhar como ilustrador. No Rio de Janeiro, frequentou os cursos da Academia Imperial de Belas Artes, onde teve aulas com Victor Meirelles e Zeferino da Costa. Após uma série de viagens de estudos na Europa, Brocos retornou ao Brasil para assumir o cargo de professor de desenho figurado na Escola Nacional de Belas Artes, por convite de Rodolfo Bernardelli.
"A Redenção de Cam" se tornaria a obra mais conhecida de Modesto Brocos. O título da pintura é uma referência ao episódio bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho mais novo, Cam, e todos os seus descendentes, conforme relatado no livro de Gênesis. Punindo Cam por zombar de sua nudez e embriaguez, Noé profetizou que os descendentes de seu filho seriam "servos dos servos de seus irmãos". Não há nenhuma passagem da Bíblia mencionando a cor da pele de Cam ou Canaã. É provável que o mito originalmente tivesse por objetivo justificar o domínio dos israelitas sobre os cananeus. Posteriormente, durante a Idade Média, a maldição de Cam foi utilizada como uma justificativa para a servidão.
Ainda no período medieval, surgiram interpretações alegando que os descendentes de Cam tiveram a pele "obscurecida pelo pecado". Aos poucos, ideólogos cristãos passaram a associar os povos de pele negra da África à descendência camita. Tais interpretações se tornaram prevalentes após o inicio da expansão colonial europeia, quando foram utilizadas como justificativa moral para o comércio de africanos escravizados, base do sistema colonial. Na argumentação dos escravagistas, o pecado de Cam seria o episódio desencadeador e permanente de uma suposta "punição divina" imposta aos povos de pele negra. Assim, a escravização dos africanos seria o cumprimento da "vontade de Deus".
O mito da maldição de Cam teve forte influência no desenvolvimento das teorias raciais oitocentistas, mas seguiu contornos próprios no Brasil. Na Europa, a emergência de teorias antropológicas como o darwinismo social e o evolucionismo social fortaleceriam a crença em diferenças somáticas e genéticas entre brancos e negros, levando à rejeição da miscigenação e ao fortalecimento do pensamento segregacionista. Já no Brasil, sobretudo após a década de 1870, registrou-se um forte apoio à tese do branqueamento por meio da miscigenação, que foi encampada pelo Estado e passou a influenciar as políticas de imigração. João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, foi um dos maiores defensores da tese do branqueamento, propondo que por meio de casamentos inter-raciais seria possível enbranquecer toda a população brasileira em três gerações — o espaço equivalente a um século.
"A Redenção de Cam" é um produto da forte presença da tese do branqueamento no imaginário social do Brasil no fim do século XIX. Na obra, Modesto Brocos vislumbra a reversão da maldição de Cam como uma alegoria para exaltar o branqueamento. Se a pele negra era uma consequência da maldição, o branqueamento através da miscigenação seria um caminho para a redenção. A proposta, portanto, é de que a purificação do povo negro somente seria obtida através de sua extinção.
A cena é ambientada em frente a uma pobre habitação de pau a pique, onde estão retratadas quatro pessoas, simbolizando três gerações de uma mesma família. Em pé no canto direito está a avó negra. Ao centro, a mãe mestiça sentada com a criança branca em seu colo. À esquerda, o pai, também branco, sentado no degrau da porta, observando o filho com olhar oblíquo e ar de satisfação. A matriarca, com semblante emocionado, ergue as mãos aos céus, em gesto de agradecimento pela "redenção": o nascimento do neto branco, que, ao seu ver, estaria liberto dos estigmas e das consequências nefastas da escravidão.
A composição hierática, a postura das personagens e elementos como o manto azul da mãe com o filho no colo remetem à iconografia tradicional da Virgem Maria com o Menino Jesus, estabelecendo nuances de sacralização diretamente relacionados à cor da pele — quanto mais escura, mais profana, quanto mais clara, mais sagrada. O bebê, o personagem mais branco do quadro, evoca a figura de Jesus Cristo, "redentor" da humanidade, reforçando o simbolismo do branqueamento como a "salvação" de um povo. Ele observa a avó e estende a mão em sua direção, num gesto ambíguo que parece sugerir uma benção.
A obra foi premiada com a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1895 e recebeu fartos elogios da crítica, de Artur de Azevedo a Coelho Neto. O poeta Olavo Bilac, membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, exaltou a obra em um texto laudatório da moral racista da época: "Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata - aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé!". Em 1911, a tela foi usada para ilustrar o artigo "Sobre os Mestiços no Brasil", escrito por João Batista de Lacerda e apresentado durante o I Congresso Universal das Raças, em Paris. Defendendo a miscigenação como estratégia de branqueamento, Lacerda descreveu a pintura como um exemplo do "negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças", e fez um prognóstico da sua tese, especulando que em cem anos a população negra estaria extinta e os mestiços representariam, se muito, 3% da população brasileira.
"A Redenção de Cam" se tornou um dos maiores símbolos do movimento eugênico brasileiro, evidenciando o pensamento racista e elitista que caracterizou o processo pós-abolicionista da Primeira República — enxergando a Europa como modelo e símbolo do progresso e o negro como o atraso, o passado a ser esquecido, apagado e reconstruído. O autor da obra, por sua vez, seria responsável por conceber outro manifesto eugenista bem conhecido. Em 1930, Modesto Brocos publicou o livro "Viagem a Marte", um romance de ficção científica que retrata o planeta vermelho como uma "utopia eugênica", onde os brancos detém o poder e mantém uma política de reprodução controlada. No livro, o autor propõe ideias como políticas de esterilização forçada e o assassinato em massa de bebês considerados imperfeitos. E assevera ter a esperança de que "tais ideias possam ser aproveitadas um dia".
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