O massacre israelense na Palestina e a fetichização do martírio
Acima, o manifestante palestino Aed Abu Amro enfrenta as forças de segurança de Israel com uma atiradeira durante um protesto contra o bloqueio à Faixa de Gaza, em 22 de outubro de 2018. Abaixo, o mesmo manifestante é socorrido após ser atingido por um tiro em outra manifestação, em 5 de novembro de 2018.
Produzida pelo fotógrafo Mustafa Hassouna, a imagem de Aed lançando uma pedra contra os soldados israelenses, ao mesmo tempo em que ergue a bandeira palestina, tornou-se uma das fotografias mais icônicas do conflito médio-oriental. O registro viralizou nas plataformas digitais e foi reproduzido à exaustão pelos veículos da esquerda política. A repercussão é compreensível. A obra de Hassouna tem um impacto visual patente. Composição dinâmica, a energia cinética expressa de forma quase palpável, a expressão corporal imponente, tudo colabora para criar uma peça de deslumbramento visual. A fotografia chegou a ser comparada com "A Liberdade Guiando o Povo", célebre obra de Eugène Delacroix retratando a Revolução de 1830, considerada o símbolo máximo da pintura romântica oitocentista.
Mas a obra de Delacroix, ainda que baseada em um evento histórico, é uma ficção, concebida como uma alegoria da liberdade, prestando-se à propaganda da simbologia republicana e liberal. Hoje, emoldurada e protegida por toda a segurança do suntuoso Museu do Louvre, a obra serve de referência iconográfica aos historiadores e ao deleite visual dos apreciadores da arte. Não há, entretanto, nada de fictício no flagelo imposto sobre o povo palestino.
Todos os anos, centenas de palestinos são massacrados pelas Forças de Defesa de Israel, à medida em que suas terras são confiscadas e convertidas em colônias israelenses, em flagrante desrespeito ao princípio da coexistência de dois Estados. Na Faixa de Gaza, há 14 anos submetida a um bloqueio inclemente e a uma rotina de bombardeios e chacinas, a situação torna-se progressivamente insustentável. Removidos de suas terras, privados de direitos civis e políticos e relegados à condição de sub-cidadãos por uma política de limpeza étnica perpetrada pelo governo israelense, os palestinos pouco podem fazer para resistir. Os soldados israelenses, bem equipados e treinados, atacam com bombas, blindados e fuzis, enquanto civis palestinos, inutilmente, tentam se contrapor utilizando-se de estilingues e pedras.
No Ocidente, entretanto, o massacre dos palestinos continua sendo mistificado e romantizado, convertendo-se em uma espécie de elegia fúnebre à resistência. As imagens da barbárie são ressignificadas como símbolos revolucionários, num processo perturbador de fetichização do sofrimento e da dor, provavelmente derivado do culto cristão ao martírio, incutido no subconsciente dos povos ocidentais. É como se a representação iconográfica da coragem e da bravura palestinas justificassem - ou ao menos relativizassem - a desproporção das forças em confronto. Como se imbuir palestinos do aspecto estético dos valores nobres equalizasse a distância que separa o estilingue do fuzil.
Não nos enganemos. Não há nada de belo ou poético no que ocorre na Palestina. No mundo material, o martírio do que luta contra a opressão só beneficia o opressor. O conflito entre Israel e Palestina não é uma guerra - é um massacre. Estilingues não salvarão a Palestina e revestir atos de desespero como ações revolucionárias apenas afastarão a esquerda cada vez mais da capacidade de analisar e intervir concretamente para auxiliar na emancipação do povo palestino. No mundo real, Davi não costuma vencer Golias. Pelo menos não com estilingues e pedras.
Comentários
Postar um comentário