Princesa Isabel e o mito isabelista da abolição
Em 13 de maio de 1888, princesa Isabel, exercendo a regência do império em nome de seu pai, Dom Pedro II, sancionou a Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil. O ato lhe rendeu a alcunha de "A Redentora" e ensejou a criação de um verdadeiro culto à sua imagem — o "isabelismo", mitificação que reinventou a biografia da aristocrata, agraciando-a com virtudes que nunca possuiu e ocultando as manchas e falhas que não combinavam com a narrativa heroicizante. O culto cooptou expoentes do movimento abolicionista, tais como André Rebouças e José do Patrocínio, engajados defensores da monarquia.
Incorporada aos livros didáticos e à historiografia oficial, a narrativa isabelista perdurou ao longo de décadas, garantindo à princesa por muito tempo o status de heroína. O culto à princesa Isabel foi respeitado até mesmo pelos próceres da República Velha, que tanto se empenharam em combater a glorificação da monarquia. A explicação está na conveniência da diegese isabelista, que busca transformar a história em um instrumento de controle social. A resistência negra nos quilombos, o sangue derramado por Zumbi dos Palmares, Tereza de Benguela e Manuel Congo, o Levante de 1814, a Revolta dos Malês, os negros abolicionistas, o esforço de Luiz Gama, todo o histórico de resistência e luta dos negros era apagado. A abolição não era vista como o resultado de um processo histórico, mas como uma dádiva concedida aos negros, um ato de bondade e misericórdia da aristocracia em prol de um povo retratado como passivo, submisso e resignado.
O isabelismo, portanto, age como um ressignificador de símbolos, transmutando carrascos em heróis e os protagonistas em coadjuvantes de sua própria história. Afinal, Isabel nunca foi abolicionista. Ao contrário: era uma escravagista. Ao lado de seu marido, Conde d'Eu, o carniceiro da Guerra do Paraguai, a princesa vivia cercada por mucamas e serventes cativos em seu palácio. Aos 18 anos, escreveu de próprio punho uma nota, listando os escravos que possuía: "Marta, negrinha de quarto. Ana de Souza, sua mãe. Francisco Cordeiro, preto do quarto. Maria d’Áustria, mulher dele. Minervina, lavadeira. Conceição, Florinda e Maria d’Aleluia, engomadeiras. José Luiz, preto músico. Antonio Sant’Ana, preto que me serviu algum tempo." Era igualmente inclemente e desapiedada em relação aos infortúnios de seus cativos. Quando os negros da casa imploraram por alforria para um escravo velho e tuberculoso, Isabel recusou-se a libertá-lo.
Em 1871, Isabel promulgou a contragosto a Lei do Ventre Livre, dando liberdade aos filhos de escravos que nascessem a partir daquela data. Malgrado sua sanção, a princesa se irritou profundamente com a aprovação da lei na Câmara dos Deputados, alinhando-se aos conservadores, que alegavam preocupação com os "prejuízos" para os latifundiários. "O espírito dos fazendeiros anda agitado", escreveu ao pai, junto com observações sobre a lei ter sido "um ato precipitado". Em 1881, diante do crescimento da pressão pelo abolicionismo, a princesa preferiu perfilar-se com a reação conservadora dos representantes dos donos da senzalas, contemporizando com aprovação da Lei Saraiva, que proibia o voto dos analfabetos e dos despossuídos.
Para se isolar do clamor dos abolicionistas que dominava o Rio de Janeiro, Isabel refugiou-se com o marido em seu palacete em Petrópolis. Quando sua aia Luísa Margarida Portugal, a condessa de Barral, lhe inquiriu sobre os argumentos contrários à escravidão, Isabel não tardou em amenizar as críticas e debochar dos abolicionistas: "Que demônio pode ter-lhe contado tantas coisas, querida? São os horríveis artigos de José do Patrocínio? Se você não pode ignorá-los, mostre que eles lhe são desagradáveis", respondeu em carta.
Foi somente depois que a situação já se tornara insustentável que Isabel, forçosamente, cedeu aos abolicionistas. O país se encontrava em estado semi-insurrecional e a escravidão se convertia em ameaça à própria manutenção da ordem imperial. As rebeliões de escravos eram generalizadas e os quilombos se multiplicavam pelo país. As forças de segurança cada vez mais abandonavam as atividades de recaptura de escravos fugidos. O movimento abolicionista já conquistara a adesão da maior parte da opinião pública. As províncias já tinham começado a abolir a escravidão individualmente e a continuidade da prática ameaçava isolar economicamente o país. Pressionada por todos os lados, Isabel sancionou o projeto da Lei Áurea, aprovado em regime de urgência na Câmara dos Deputados em 13 de maio de 1888. Assim, o Brasil, país que mais comercializou escravos no mundo durante a era moderna, tornava-se também o último país do Ocidente a abolir a escravidão.
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