Kerala e os comunistas indianos
Autorriquixás decorados com imagens de Fidel Castro percorrem as ruas de Calicute, estado de Kerala, em dezembro de 2016.
Nenhum lugar do planeta onde vigore a economia de mercado possui tantas referências ao comunismo quanto Kerala — o mais vermelho dos 28 estados da Índia. Em Kerala, estrelas, foices e martelos estão por toda parte, até no design dos pontos de ônibus. Bandeiras vermelhas e adágios famosos de teóricos do socialismo decoram as esquinas das cidades. Os muros são pintados com representações de Karl Marx, Lenin, Stalin, Fidel Castro e Che Guevara e as ruas são batizadas com nomes como Friedrich Engels e Ho Chi Minh. É difícil percorrer mais do que cinco quilômetros sem se deparar com um comitê de um partido de esquerda.
A presença massiva de referências às ideias socialistas e comunistas em Kerala é explicada por seu histórico peculiar de sucessivas administrações de esquerda, bastante raro no contexto das democracias liberais burguesas. Desde os anos cinquenta, as legendas coligadas na Frente Democrática de Esquerda — sobretudo o Partido Comunista da Índia e o Partido Comunista Indiano-Marxista — venceram quase todos os processos eleitorais organizados em Kerala, transformando o estado no principal reduto da esquerda indiana. Kerala é a terra natal de alguns dos mais renomados marxistas indianos, tais como P. K. Vasudevan Nair, A. K. Gopalan e E. M. S. Namboodiripad.
A ascensão da esquerda em Kerala remonta à década de 1920, quando os trabalhadores e camponeses começaram a se articular politicamente para organizar a luta anticolonial contra o domínio britânico, questionar as opressões de casta, classe e gênero e as superstições religiosas que serviam ao controle social. A partir dos anos trinta, Kerala se tornou sede de vários movimentos sociais, que por sua vez se uniram para formar uma expressiva tendência socialista que passou a operar nos quadros do Congresso Nacional Indiano (CNI). Denominada "Partido Socialista do Congresso", essa facção logrou obter a maioria dos assentos no Comitê Parlamentar de Kerala Pradesh. Na década de quarenta, as divergências em relação aos princípios da Satyagraha e as críticas ao movimento de resistência não violenta liderado por Mahatma Gandhi levaram à expulsão da tendência socialista do CNI. Os socialistas então se reagruparam, inaugurando a seção local do Partido Comunista da Índia (PCI).
Em 1957, o PCI venceu a eleição para o governo de Kerala, mas foi deposto dois anos depois, durante o "Vimochana Samaram" — movimento anticomunista organizado pela elite das castas nair, pela Igreja Católica e pela Liga Muçulmana da União Índia. Não obstante, a legenda voltou a vencer as eleições em 1965 e passaria as cinco décadas seguintes mantendo-se no governo de Kerala ou revezando-o com o Partido Comunista Indiano-Marxista (PCI-M) — dissidência do PCI fundada em 1964, em decorrência de divergências teóricas insufladas pela cisão entre China e União Soviética. As coligações de esquerda somente foram derrotadas em 2011, mas já retornaram ao governo no pleito seguinte, em 2016. O atual governador de Kerala é Pinarayi Vijayan, do PCI-M.
O forte apoio popular dos eleitores de Kerala à esquerda resulta dos bons resultados provenientes das reformas sociais implementadas desde os anos sessenta. Embora limitada pelas conformações estruturais da democracia liberal e da economia de mercado, a esquerda em Kerala conseguiu promover a universalização dos sistemas de saúde e educação e implementou a Lei das Relações Agrárias, abolindo a estrutura fundiária semifeudal. Também criou abrangentes programas sociais e proteções trabalhistas e incentivou a superação do sistema de castas. Kerala é hoje o estado mais desenvolvido da Índia, possuindo um Índice de Desenvolvimento Humano (0,790) bem superior ao de países como Brasil e Ucrânia. O estado possui a maior expectativa de vida e a maior taxa de alfabetização da Índia, bem como as menores taxas de mortalidade infantil e de homicídios do país. Kerala é o único estado indiano a possuir salário mínimo. Também possui a mais avançada legislação garantindo igualdade formal entre gêneros, além de ter praticamente abolido o sistema de castas.
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