Tesouros do Museu Nacional: a Estela de Raia
Estelas eram lajes feitas em pedra (sobretudo calcário), madeira ou, mais raramente, faiança. Possuíam finalidades diversas, variando do uso cerimonial ao político-administrativo. Eram entalhadas ou pintadas com cenas e inscrições hieroglíficas, anunciando decretos, registrando acontecimentos históricos, delimitando fronteiras, assinalando hinos e preces para divindades e demarcando tumbas nas capelas funerárias.
As mais antigas estelas egípcias datam da Época Tinita, sendo anteriores ao terceiro milênio a.C. A partir do Império Médio, inaugurou-se uma nova tradição iconográfica de estelas votivas produzidas no âmbito do Festival de Osíris — cerimônia religiosa sediada anualmente na necrópole de Abidos, celebrando a morte e ressureição de Osíris, o deus egípcio da fertilidade e das colheitas abundantes. Os devotos costumavam produzir estelas para depositar nas capelas funerárias de Abidos durante o festival, pedindo proteção para suas famílias, colheitas abundantes ou intervenção divina em alguma questão.
A "Estela da Raia" pertence a esse conjunto de estelas votivas produzidas por ocasião do Festival de Osíris. No topo da estela, estão gravados os olhos de Hórus ladeando o anel-shen, simbolizando a proteção divina. Abaixo dos amuletos, há uma representação de Osíris sentado portando o gancho e o malho, seus atributos clássicos. Junto à figura do deus, há a inscrição "Osíris, Senhor do Território Sagrado". Em frente a Osíris, há uma mesa repleta de oferendas. Na parte inferior direita da peça, há a representação de um casal erguendo as mãos em gesto de adoração. São os comitentes da estela, Raia e sua esposa Maia. A inscrição hieroglífica na parte inferior esquerda da estela evidencia sua finalidade. Lê-se: "Louvar Osíris, prestar homenagem ao Soberano da Eternidade, para que ele conceda o que aparece sobre o seu altar, em cada festival no Egito – feito pelo chefe, Raia, que renova [a sua] vida, [e] por sua esposa, a senhora da casa, Maia." A estela, portanto, postulava a Osíris que as oferendas feitas ao deus retornassem ao próprio casal.
A "Estela de Raia" não era apenas um importante testemunho iconográfico das tradições do culto osiriano, mas uma peça única em todo o registro arqueológico conhecido do Antigo Egito. Entre os hieróglifos gravados na pedra, havia o termo "qasinu" ("chefe"), que não é de origem egípcia, mas sim hebraica. Esse mesmo termo aparece nos textos da Bíblia hebraica e nos célebres tabletes cuneiformes de Mari, registrados em língua ugarítica, falada na Síria Antiga. Essa estela era o único exemplo conhecido do uso dessa palavra na língua egípcia antiga. Tratava-se, portanto, de um artefato de enorme importância histórica, conectando três idiomas e civilizações distintas.
A obra pertenceu à coleção do comerciante Nicolau Fiengo, que adquiriu em Marselha um conjunto de antiguidades egípcias que pertenceram ao famoso explorador italiano Giovanni Battista Belzoni, responsável por escavar a Necrópole de Tebas e o Templo de Karnak. Em 1826, Nicolau Fiengo tentou levar essa coleção para Buenos Aires, por encomenda do presidente da Argentina, Bernardino Rivadavia. Um bloqueio no Rio da Prata impediu que Fiengo completasse a viagem e o forçou a fazer uma escala no Rio de Janeiro, onde colocou as peças a leilão. Aconselhado por José Bonifácio, o imperador Dom Pedro I arrematou a coleção completa e a doou ao Museu Nacional. A estela permaneceu por quase dois séculos integrando o acervo de quase 700 peças egípcias da instituição, mas foi perdida no incêndio que destruiu o prédio e a coleção do Museu Nacional em 2 de setembro de 2018. Das 49 estelas egípcias pertencentes ao museu, apenas uma foi resgatada em bom estado.
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