As manifestações da Praça da Paz Celestial
Manifestantes erguem cartazes com mensagens em inglês e se reúnem em torno de uma réplica da Estátua da Liberdade. Em 4 de junho de 1989, chegavam ao ápice os protestos na Praça da Paz Celestial, em Pequim, capital da China.
A narrativa é bem conhecida. Em 4 de junho de 1989, um protesto de estudantes que ocupavam a Praça da Paz Celestial exigindo liberdades democráticas teria sido brutalmente reprimido pelo Exército de Libertação Popular, com uso de blindados e infantaria fortemente armada, a mando do governo da China. Seria mais um capítulo da série de "insurreições" que atingiram os governos socialistas do mundo inteiro no fim dos anos oitenta. O número de vítimas era uma incógnita. Jornais como The New York Times falavam em algo entre 400 a 800 pessoas, enquanto ONGs como a Cruz Vermelha estimavam mais de 10.000 mortos. A reação foi dura. Estados Unidos e União Europeia condenaram severamente o autoritarismo do governo chinês, estabeleceram uma série de sanções e decretaram um embargo de venda de armas à China que se mantém em vigor até hoje. Os aparelhos ideológicos ocidentais se deleitaram diante do pretexto ideal para fazer aflorar seu anticomunismo hidrófobo.
A análise mais detida dos acontecimentos, entretanto, revela outras narrativas bem distintas. "Até onde pode ser determinado pelas evidências, ninguém morreu naquela noite na Praça da Paz Celestial". Essa frase não foi dita pelo governo chinês ou por um apologista do Partido Comunista, mas pelo jornalista estadunidense Jay Mathews, que trabalhou como correspondente do jornal Washington Post em Pequim em 1989. A afirmação de Mathews está longe de ser uma voz isolada. Richard Roth, jornalista da agência estadunidense CBS News, referendou a mesma impressão: "Nós não vimos corpos, feridos, ambulâncias ou equipes médicas - resumindo, nada sugerindo, muito menos provando, que ocorreu um massacre' na praça."
James Miles, jornalista da BBC News, endossou as afirmações anteriores em 2009: "Eu era um dos jornalistas estrangeiros que testemunharam os eventos daquela noite. Não houve massacre na Praça da Paz Celestial". Nicholas Kristof, do The New York Times, outro correspondente que testemunhou o evento in loco, não apenas negou que tenha ocorrido algum massacre como afirmou ter testemunhado os estudantes deixando a Praça da Paz Celestial por vontade própria, sem que nenhum tiro fosse disparado. Graham Earnshaw, correspondente da agência Reuters, afirmou o mesmo em sua biografia, ao dizer que "os militares vieram, negociaram com os estudantes e convenceram todos a saírem pacificamente", emendando que "ninguém morreu naquela praça".
Se não bastam os relatos dos jornalistas que acompanharam o evento, tome-se o registro feito pelo próprio governo estadunidense em um telegrama diplomático de julho de 1989, vazado pelo WikiLeaks. O telegrama produzido pela Embaixada dos Estados Unidos em Pequim traz o relato de um diplomata chileno e de sua esposa: "Eles conseguiram entrar e sair da Praça da Paz Celestial repetidas vezes e não foram assediados pelas tropas. Permaneceram com os estudantes até o final. O diplomata assegura não houve tiroteios na praça ou no monumento". Diante do exposto, cabe questionar por que os Estados Unidos sancionariam o governo chinês se seus próprios diplomatas sabiam que não houve massacre. A resposta é que, evidentemente, a Casa Branca era a maior interessada na existência de tal massacre. E se a chacina não pudesse ser insuflada, teria de ser inventada.
As manifestações na Praça da Paz Celestial tiveram início logo após a morte de Hu Yaobang, braço direito de Deng Xiaoping e Secretário-Geral do Partido Comunista da China entre 1982 e 1987. Vitimado por um infarto aos 73 anos de idade, Yaobang conduzira uma série de reformas políticas e econômicas que lhe granjearam popularidade entre parte da juventude chinesa. Assim, os jovens começaram a ir até a Praça da Paz Celestial para homenageá-lo e manifestar lamentação por sua partida. Em meio ao contexto de revoluções coloridas contra os governos socialistas europeus, o governo dos Estados Unidos vislumbrou a possibilidade de manipular as manifestações pela morte de Yaobang, instrumentalizando-as em favor de uma operação de mudança de regime, visando derrubar o governo socialista da China.
Em 20 de abril de 1989, apenas cinco dias após a morte de Yaobang, o governo dos Estados Unidos apontou James Lilley, um veterano que atuou por mais de 30 anos na Agência Central de Inteligência (CIA), para o cargo de embaixador do país na China. O movimento não passou despercebido pela imprensa na época. Um artigo publicado pelo Vancouver Sun em 17 de setembro de 1992 assegurava que a "Agência Central de Inteligência tinha contatos entre os manifestantes da Praça da Paz Celestial", emendando que "ao longo de meses antes dos protestos, a CIA estava ajudando os estudantes ativistas a formarem um movimento antigovernamental".
O governo dos Estados Unidos teve o apoio do bilionário George Soros e do Fundo Nacional para a Democracia para executar as ações de inteligência. Conhecido por financiar think tanks em todo o planeta, George Soros havia doado milhões de dólares desde 1986 para uma ONG chamada "Fundo para Reforma e Abertura da China", responsável por cooptar e treinar líderes estudantis "pró-democracia" que entrariam em cena em 1989. Já o Fundo Nacional para a Democracia, uma ONG subvencionada com verbas do governo dos Estados Unidos e acusada de orquestrar operações de mudança de regime em vários países do mundo, abriu escritórios na China em 1988. Outro nome que provavelmente teve papel ativo em fomentar os protestos da Praça da Paz Celestial foi Gene Sharp, autor dos infames manuais de "revoluções democráticas" e tema do documentário "Como Iniciar uma Revolução". Ligado à CIA, ao Pentágono e ao Fundo Nacional para a Democracia e conhecido por fomentar sublevações em todo o planeta, Sharp passou nove dias em Pequim durante os protestos.
Essa intervenção das organizações ocidentais foi possível graças à colaboração do próprio governo chinês, que à época estava sob o comando de Zhao Ziyang, Secretário Geral do Partido Comunista e primeiro-ministro da China. Ziyang era partidário do ideário neoliberal, incentivava as privatizações e era admirador de Milton Friedman. Seu principal assessor, Chen Yizi, era o diretor do Instituto de Reformas Econômicas e Estruturais da China, um influente think tank liberal ligado aos governos capitalistas ocidentais. Quando a cúpula do Partido Comunista da China se deu conta da colaboração entre o primeiro-ministro e os órgãos ocidentais, removeu Ziyang do seu cargo e o colocou em prisão domiciliar pelo resto de sua vida. Soros e sua ONG foram banidos da China e Chen Yizi fugiu para os Estados Unidos.
A influência externa nos protestos podia ser percebida pela grande quantidade de cartazes com frases em inglês, trazendo slogans pró-democracia feitos sob medida para apelar à visão de mundo do público ocidental. Os estudantes não formavam um bloco homogêneo, compreendendo desde apoiadores de Yaobang e grupos que queriam sociabilizar e se divertir até idealistas a favor de pautas como democracia e liberdade de expressão. As lideranças, entretanto, eram quase todas cooptadas, como foi evidenciado pela Operação Yellowbird - uma operação realizada em conjunto por agências de inteligência ocidentais como CIA, MI-6 e DGSE, visando retirar os líderes dos protestos do território chinês, em colaboração com os governos de Taiwan e Hong Kong.
Os órgãos ocidentais também foram responsáveis por armar provocadores e bandidos com pistolas, metralhadoras e fuzis, buscando incitar uma resposta violenta. Houve, de fato, inúmeros confrontos violentos entre os dias 4 e 5 de junho em vários bairros de Pequim, resultando em um número estimado de 200 a 300 mortes. O que a imprensa não costuma dizer é que metade dos mortos foram militares ou policiais chineses. Quase não existem imagens ou vídeos de soldados chineses atacando civis nos protestos da Praça da Paz Celestial. Em oposição, há inúmeras imagens mostrando policiais sendo espancados e assassinados no confronto. Um artigo publicado pelo jornal Wall Street Journal em 5 de junho de 1989 descrevia o cenário de violência: "dúzias de soldados foram retirados dos caminhões, severamente espancados e abandonados após serem dados como mortos. Em um cruzamento a oeste da praça, o corpo de um jovem soldado, espancado até a morte, foi despido e pendurado pelo pescoço na lateral de um ônibus."
Isso ocorreu porque a maioria dos soldados que acompanharam os protestos não estavam armados. Há vídeos e fotografias que registram os soldados interagindo com os civis sem portar sequer cassetetes. Desde o começo dos protestos em abril, o governo chinês relutou em responder com força e só impôs lei marcial após maio, quando os manifestantes, liderados por agitadores, tornaram-se gradualmente mais e mais violentos. Até mesmo o vídeo mais famoso do evento, mostrando um homem anônimo tentando impedir o avanço dos blindados, é bem sintomático do exagero da narrativa ocidental de "violência generalizada". As imagens costumam focar apenas nos primeiros segundos - ignorando o fato de que os veículos se recusaram a avançar sobre o homem e não o agrediram nem mesmo quando ele subiu em cima dos blindados, somente deixando o local por vontade própria, sem sofrer qualquer tipo de repressão.
Chai Ling, uma das líderes dos protestos da Praça da Paz Celestial, hoje morando nos Estados Unidos, chegou a declarar numa entrevista: "Eu queria dizer aos manifestantes que nós estávamos esperando um banho de sangue, que seria necessário um massacre que fizesse o sangue correr como um rio pela Praça da Paz Celestial para acordar o povo. Mas como eu poderia dizer isso a eles? Como poderia dizer a eles que suas vidas tinham de ser sacrificadas para que nós pudéssemos vencer?". A declaração um tanto psicótica resume bem a natureza do plano estadunidense de mudança de regime. Washington precisava de um massacre para derrubar o governo chinês. Como o massacre não ocorreu, apesar das várias tentativas de insuflá-lo, foi necessário criar a narrativa do massacre. Afinal, a percepção tem mais peso do que a realidade e as narrativas históricas dependem menos de fatos do que do poder de controlar a informação.
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