Lina Bo Bardi

A arquiteta italiana Lina Bo Bardi passou 45 de seus 77 anos de vida no Brasil. Não obstante, sua produção factual, representativa do estilo brutalista, ficou limitada a menos de 20 edificações próprias concluídas. A disparidade entre o talento de Lina e o volume efetivo de seu trabalho talvez possa ser explicada por sua dificuldade em se integrar aos círculos intelectuais brasileiros e sua postura ambivalente em relação à burguesia local. Ao mesmo tempo em que coabitava pacificamente os ambientes frequentados pela alta sociedade paulistana, Lina não se furtava a ressaltar suas divergências em relação à mentalidade burguesa. "Tenho horror em projetar casas para madames, onde entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vai ser a piscina, as cortinas", declarou em certa oportunidade.

Nas vernissages do Museu de Arte de São Paulo (MASP), frequentadas simultaneamente por socialites em casacos de pele e artistas ligados aos movimentos contestadores, Lina tinha o hábito de declamar blagues contraditórias. Costumava, por exemplo, chocar conservadores e progressistas quando se afirmava "stalinista e antifeminista". A arquiteta defendia com convicção o entendimento de que Josef Stalin fora o principal responsável por libertar a Europa do horror nazifascista, mas ao mesmo tempo enxergava o movimento feminista como uma frivolidade burguesa.

As declarações ambíguas de Lina, seus vínculos profissionais com o magnata da imprensa Assis Chateaubriand e, sobretudo, seu relacionamento com o crítico de arte e marchand Pietro Maria Bardi — que em sua juventude fora filiado ao Partido Fascista italiano — contribuíram para que a classe artística progressista a enxergasse com reserva e desconfiança. Mas se as críticas de Lina ao feminismo eclipsaram diante de sua própria contribuição ao movimento — ao inserir mulheres em uma área do saber até então quase exclusivamente dominada por homens e tornar-se a primeira arquiteta brasileira consagrada com o Leão de Ouro —, as contradições de sua biografia ainda incitam questionamentos sobre a natureza de seu antifascismo.

Malgrado as disputas, é consenso que a arquiteta conheceu o fascismo e o antifascismo em primeira mão. Nascida em Roma em 5 de dezembro de 1914, Lina se formou em arquitetura nos anos trinta, mudando-se em seguida para Milão, onde trabalhou no escritório do célebre arquiteto Gio Ponti, fundador da revista Domus. Logo após abrir sua própria firma, a arquiteta testemunhou a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em 1943, perdeu seu escritório, destruído durante um bombardeio, e foi pressionada pelos ocupantes alemães a suspender a circulação da revista Domus, da qual havia se tornado diretora. Foram esses fatos que teriam contribuído para sua adesão à resistência antifascista. Nas palavras de Lina: "Sentia que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que esta era a única tarefa digna de ser vivida, o ponto de partida para sobreviver. Entrei para a Resistência, com o Partido Comunista. Só via o mundo em volta de mim como realidade imediata, e não como exercitação literária abstrata."

A contribuição efetiva de Lina ao Comitê de Libertação Nacional seria questionada pelo arquiteto Carlo Pagani, que, entretanto, reconheceu a importância da decisão da arquiteta de manter a revista Domus em circulação, a despeito das restrições impostas pelos ocupantes nazistas. A desobediência custou a Lina a perseguição da Gestapo, que apreendeu exemplares da revista contendo um artigo em que Lina ironizava um projeto arquitetônico de cidades subterrâneas elaborado pela governo nazista. Após o término do conflito, já casada com Pietro Maria Bardi, Lina veio para o Brasil. Seu marido fora convidado por Assis Chateaubriand para fundar e dirigir o MASP. O casal planejava ficar um ano à frente do projeto, mas, vislumbrando as possibilidades em um novo país e desestimulados a voltar para uma Itália arrasada pela guerra, decidiram fixar residência no Brasil, onde permaneceram pelo resto de suas vidas.

Lina Bo Bardi foi convidada a projetar a nova sede do MASP, em um terreno da Avenida Paulista que fora doado à prefeitura pelo urbanista Joaquim Eugênio de Lima no começo do século XX. O doador havia condicionado a cessão do terreno à manutenção da vista para o centro da cidade, descortinada pelo mirante sobre a a Avenida Nove de Julho. Assim, qualquer construção no terreno teria de ser suspensa ou subterrânea. Lina optou pela junção das duas possibilidades, concebendo um pavilhão elevado, suspenso a oito metros do chão por quatro enormes colunas, e um edifício semienterrado com três pavimentos. Entre os dois blocos, estendia-se um vão livre de 74 metros, à época o maior do mundo. O projeto era tão arrojado que necessitou da aplicação de uma nova patente de concreto protendido, desenvolvida pelo engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz.

Lina não cobrou honorários pelo projeto do museu. A arquiteta enxergava o MASP como uma missão, parte um legado que ela desejava deixar para a sociedade brasileira. Lina pretendia que o MASP fosse um novo modelo de museu, não mais como "um túmulo para múmias ilustres" ou um "depósito de obras humanas", e sim como um centro cultural dinâmico e multidisciplinar, oferecendo exposições, projeção de vídeos e filmes, peças de teatro, espetáculos de música e de dança, ateliê, oficinas, biblioteca, etc. Um espaço condigno ao rico acervo repleto de Picassos, Van Goghs, Renoirs, Monets e Portinaris, mas que não estivesse subordinado à autoafirmação ou expressão do poder financeiro da elite paulistana, e sim a um projeto de educação artística para as massas, de permitir ao povo conhecer os grandes mestres da arte. Assim, a arquiteta viu-se constantemente envolvida em disputas sobre o perfil da instituição, renegando tanto a museologia mais conservadora de seu marido, o diretor Pietro, quanto a concepção original do mecenas Assis Chateaubriand, que pretendia que o espaço fosse um núcleo de fortalecimento das células burguesas.

No projeto arquitetônico do MASP, Lina tentou elevar a expressão da "arquitetura pobre" — sua interpretação pessoal do estilo brutalista — ao ápice. A arquiteta buscou se desfazer do caráter intimidador das construções palacianas e do esnobismo cultural, buscando aliar funcionalidade à estética popular, evocando um sentido de coletividade. O espaço, afinal, não deveria servir à elite intelectual, mas aos não iniciados, aproximar o leigo do universo da arte. Assim, a construção é aberta aos transeuntes, sem cercas, portões, muros ou barreiras separando-a da cidade.

O edifício possui acabamento simples, com concreto aparente e borracha industrial de chão de fábrica. Há espelhos d'água e canteiros com plantas cercando a praça de paralelepípedos do vão livre, aludindo à tradição cultural ibero-americana. Lina também inovou nos cavaletes de vidro que criou como suportes para as pinturas. Ao invés de trazerem a identificação do autor junto à tela, os suportes têm as etiquetas na parte posterior da obra. O objetivo é estimular o visitante a apreciar a obra pelo seu próprio valor artístico e estético, não vinculando a apreciação ao fato do autor ser mais ou menos famoso. A tentativa de Lina de abolir o ambiente elitizado dos museus em favor de uma concepção estética mais popular enfrentou críticas severas de parte da imprensa, que chegou a rotular o conjunto como "expressão de mau gosto". O MASP, entretanto, caiu rapidamente no gosto popular, não apenas integrando-se de forma plena à paisagem paulistana, mas tornando-se um dos ícones mais conhecidos da cidade.

As divergências sobre o partido museológico do MASP também estiveram visíveis na inauguração da sede do museu na Avenida Paulista. Enquanto Pietro Maria Bardi se esforçava em trazer a rainha do Reino Unido, Elizabeth II, para inaugurar o edifício, Lina organizou como exposição inaugural a mostra antológica "A Mão do Povo Brasileiro", com obras de arte popular e artesanato provenientes de todas as regiões do país. Após o golpe militar de 1964, o rompimento estético, ideológico e conceitual com o marido se aprofundou ainda mais. Enquanto Pietro tentava se aproximar de empresários e da cúpula do regime em busca de recursos para o museu, Lina se vinculava aos movimentos de oposição à ditadura e expressões contestadoras da cena cultural brasileira. Colaborou, por exemplo, com o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, para o qual projetou a cenografia da peça "Na Selva das Cidades", de Bertolt Brecht, em que aparecia o primeiro nu frontal feminino do teatro brasileiro. Também projetou os cenários da peça "Gracias Señor", sediada no Teatro Oficina em 1971.

As tensões políticas se agravaram quando Lina passou a apoiar os movimentos de guerrilha e a luta armada contra a ditadura militar durante os "Anos de Chumbo". Lina chegou a dar guarida para o revolucionário Carlos Marighella, escondendo-o no canteiro do MASP enquanto os militares o procuravam. Também sediou na sua casa diversas reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro fundado por Marighella, responsável por conduzir diversas ações de enfrentamento ao regime militar entre 1967 e 1974. As autoridades policiais chegaram a requisitar sua prisão preventiva, acusando-a de manter ligações com "grupos terroristas". Lina teve de se exilar na Itália e só retornou ao Brasil após ser absolvida no processo.

Lina também dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia e coordenou os projetos de restauração do Solar do Unhão, da Casa do Benin e do Teatro Castro Alves, todos em Salvador. Em conjunto com os arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki, Lina elaborou o projeto de restauração do centro histórico de Salvador, tombado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Em São Paulo, projetou no fim da década de 1970 o SESC Pompeia, retomando várias das concepções estéticas e a inspiração popular do projeto do MASP. Também elaborou a reforma do Teatro Oficina no começo da década de noventa. Manteve importante atividade cultural até o fim da vida. Faleceu em 20 de março de 1992, deixando inacabado o projeto de reforma do Palácio das Indústrias, então sede da Prefeitura de São Paulo.

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