O tango e o apagamento histórico da herança cultural negra na Argentina

Capa de partitura da canção "De La Vida Milonguera", tango para piano do compositor argentino Augusto Berto, de 1912.

O tango é uma das expressões culturais latinas mais conhecidas, muito apreciada em todo o mundo pelo caráter cênico de suas coreografias complexas, bem como pelo seu estilo musical único, caracterizado pelo ritmo sincopado e compassos binários. Surgido no fim do século XIX na região do Rio da Prata, o tango começou a ser exportado para a Europa no começo do século XX, tornando-se uma febre em cidades como Paris, Londres e Berlim. Posteriormente, chegou a Nova York, incorporando-se ao repertório das grandes gravadoras e da indústria cultural de massa, ganhando em seguida fama mundial. O tango daria origem a uma série de variações e influenciaria diversos outros estilos musicais — incluindo o maxixe brasileiro. Sua coreografia, imbuída de expressão emotiva, misturando paixão, melancolia e tristeza, também revolucionou a dança de salão — e levou o compositor Enrique Santos Discépolo a definir o estilo como "um pensamento triste que se dança". A popularidade do tango foi coroada em 2009, quando o estilo foi classificado como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco.

Não obstante, a assimilação do tango pelas classes abastadas da Argentina e do Uruguai e sua popularização nos centros culturais europeus e estadunidenses deu-se em paralelo ao processo de apartamento do estilo de suas origens populares — muito distantes dos espetáculos refinados encenados nos clubes e bares de feições aristocráticas e plateias exclusivamente caucasianas. O tango surgiu nas periferias de cidades como Buenos Aires e Montevidéu, habitadas pelas camadas populares, sobretudo comunidades afro-riopratenses, relegadas aos subúrbios desde a abolição da escravidão. Após o governo de Juan Manuel de Rosas, houve na Argentina o aumento da repressão contra os costumes afroportenhos. Proibidos de marchar com seus candombes nas ruas, os negros argentinos passaram a celebrar sua cultura em ambientes fechados, criando casas de dança chamadas de "milongas" — em referência ao ritmo folclórico homônimo, muito apreciado nesses locais.

Aos poucos, as milongas passaram a ser frequentadas por famílias mestiças oriundas do interior e por imigrantes europeus de baixo poder aquisitivo, que também buscaram refúgio nas periferias riopratenses. A fusão dos ritmos europeus e africanos entoados nas casas de dança — polka, milonga, habanera — gradualmente deu origem ao tango. Estima-se que transição para o novo estilo tenha durado cerca de quarenta anos. As bases coreográficas do tango, por sua vez, têm origem na mistura do candombe, da valsa e da mazurca, estilos rejeitados pelos setores conservadores, que os rotulavam como indecentes e imorais, em função do contato físico entre os praticantes. Já o nome "tango" antecede em várias décadas o surgimento do próprio estilo, designando originalmente os locais onde os negros argentinos cantavam e dançavam.

Em 1897, o pianista afro-argentino Rosendo Mendizábal publicou "El Entrerriano", o primeiro tango conhecido. Nos anos seguintes, dezenas de compositores negros ajudaram a definir a identidade do novo gênero musical. O estilo logo se espalhou pelos bairros populares. Também era frequentemente tocado em casas de baile, bares e bordéis, que fomentaram o surgimento das primeiras bandas, contratadas pelos proprietários para distrair os clientes. A sensualidade da dança e a origem popular do tango, entretanto, eram considerados ofensivos pelas classes abastadas argentinas, o que levou a uma onda de repressão e censura ao estilo pelas autoridades governamentais, em paralelo a uma tentativa de intensificar o controle social sobre as classes baixas.

No começo do século XX, marinheiros europeus que aportavam em Buenos Aires e Montevidéu começaram a se interessar pelo estilo e a levar exemplares das canções para seus países de origem. Em 1907, a canção "La Morocha" do compositor uruguaio Enrique Saborido fez enorme sucesso em Paris. Da capital francesa, o ritmo se espalhou para outras metrópoles europeias e logo as bandas e orquestras de tango começaram a ser convidadas para apresentações internacionais. Surpresa com a boa recepção do estilo entre os europeus, a burguesia argentina, acostumada a mimetizar o comportamento dos franceses, viu-se obrigada a gostar de tango. Para torná-lo mais palatável, promoveu o "branqueamento" do estilo.

Os afro-argentinos seguiram dando enormes contribuições para a consolidação do tango ao longo do século XX. O "payador" Gabino Ezeiza, por exemplo, concebeu obras de grande originalidade ao inserir a milonga nos desafios de trovas. O compositor Enrique Maciel concebeu exemplares soberbos da "valsa criolla", nomeadamente "La Pulpera de Santa Lucía". E o maestro Horacio Salgán se tornaria o expoente máximo da renovação do estilo que daria origem ao chamado "tango de vanguarda". Mas, aos poucos, essas referências foram sendo adaptadas ao gosto da elite. Criaram-se orquestras e ambientações aristocráticas para introduzir o estilo nos círculos da burguesia portenha, enquanto os palcos eram reservados aos artistas brancos, visando esconder as raízes negras, mestiças e populares do ritmo. Assim, a célebre canção "Heróico Paysandú" do "El Negro" Ezeiza se tornaria um grande sucesso na voz de Carlos Gardel. E as inovações de Salgán serviriam de base para o movimento de renovação musical encabeçado por Astor Piazzolla.

O processo de elitização e branqueamento do tango reflete a própria consolidação do projeto eugênico na Argentina, que levou ao desaparecimento de sua população negra entre os séculos XIX e XX. O país, onde os afrodescendentes perfazem hoje apenas 0,4% da população, já chegou a ter 30% de habitantes negros no fim do século XVIII. O uso dos negros na linha de frente das guerras e conflitos travados ao longo do século XIX, as epidemias de cólera e febre amarela, concentradas nas comunidades afrodescendentes, o estímulo à miscigenação e a política de fomento à imigração em massa de europeus levaram ao branqueamento gradual da população. Ao mesmo tempo, esse processo alimentou um ideário racista, ainda profundamente arraigado em setores da sociedade argentina, fortalecendo um ideal da pureza racial, de identificação étnica e cultural com a Europa e de rejeição e apagamento das heranças culturais indígenas e africanas — o sonho de uma Europa latina, que segue vivo, ainda que limitado às próprias fronteiras dos nossos hermanos.

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