O buquê de Espertirina
O uso do buquê de noiva é uma tradição milenar, originária do Antigo Egito, onde era comumente associado à função mística de afugentar inimigos e espíritos ruins. Na era vitoriana, o buquê adquiriu um simbolismo distinto, com a atribuição de significados específicos para cada tipo de flor. Rosas vermelhas, por exemplo, remeteriam à paixão e o cravo simbolizaria a fertilidade. A tradição ainda não estabeleceu um vínculo definitivo entre o simbolismo das flores e o movimento operário, mas isso não impediu que o buquê de Espertirina entrasse para a história, levando o conceito do uso do ramo de flores para "afugentar inimigos" a um novo patamar.
Espertirina Martins nasceu em Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, em 16 de dezembro de 1903. Cresceu em um ambiente politizado, em uma família repleta de militantes anarquistas. Suas irmãs, Eulina, Dulcina, Virgínia, seus irmãos, Nino, Henrique e Armando, e os cunhados, Djalma Fetterman e Zenon de Almeida, eram todos ligados ao movimento operário e à militância anarquista. Ainda muito jovem, entre aulas de violino e os estudos do primário, Espertirina já participava de passeatas e distribuía panfletos nas portas das fábricas.
A juventude de Espertirina transcorreu em um momento de efervescência dos movimentos operários no Brasil, instados à ação pelo descontentamento generalizado com as condições de trabalho. Jornadas abusivas, salários miseráveis, insalubridade, exploração da mão de obra infantil e autoritarismo patronal eram as regras às quais se submetiam trabalhadores em todo o país. Em 1917, sob influência do movimento revolucionário na Rússia e em reação ao aumento brutal do custo de vida, o Brasil foi tomado por uma onda de greves que afetaram quase todos os setores da economia urbana. As greves foram puxadas pelos trabalhadores têxteis do Cotonifício Rodolfo Crespi em São Paulo e logo se espalharam pelo Brasil, insufladas por organizações sindicais de inspiração anarquista e socialista.
Em Porto Alegre, a greve teve ampla adesão dos trabalhadores. Pedreiros, padeiros, estivadores, operários das fábricas, funcionários da Companhia de Força e Luz, carroceiros, tipógrafos, todos cruzaram os braços. Barricadas e manifestações tomaram as ruas da capital gaúcha, enquanto piquetes e motins eram organizados nas portas das fábricas. Algumas instalações fabris chegaram a ser tomadas por trabalhadores reivindicando autogestão operária. Incomodado com a paralisação da produção, o patronato passou a pressionar o governo, exigindo imediata reação contra os grevistas. Teve início a chamada "Guerra dos Braços Cruzados", caracterizada pela repressão violenta das forças de segurança contra os operários. Diversos trabalhadores ficaram feridos e alguns foram mortos em decorrência da brutalidade policial.
Foi o cortejo de sepultamento de um desses operários que serviu de palco para a chamada "Batalha da Várzea". O cortejo se tornara um protesto contra a repressão policial, sendo acompanhado por milhares de operários em passeata pelas ruas de Porto Alegre. Espertirina Martins e sua família compareceram ao cortejo e iam à frente da multidão. A jovem de quinze anos trajava um vestido branco e carregava um buquê de flores, como se fosse uma noiva. Do lado oposto da avenida, a cavalaria da Brigada Militar avançava com armas em punho, prontos para reprimir novamente os operários.
Quando os dois grupos estavam prestes a se encontrar, Espertirina aproximou-se da cavalaria, jogou seu buquê no meio dos brigadianos, virou as costas e correu. Seguiu-se uma grande explosão que atingiu em cheio os soldados. O buquê lançado por Espertirina estava carregado com artefatos explosivos que tinham sido projetados por seu cunhado, Djalma Fetterman. Além de neutralizar parte dos policiais, a explosão assustou os cavalos, que debandaram ignorando os comandos dos seus condutores. Seguiu-se uma violenta batalha campal, onde a polícia foi finalmente subjugada pelos operários.
A vitória dos trabalhadores alarmou o patronato, sinalizando a possibilidade factual de radicalização do movimento. Atenta aos desdobramentos da mobilização operária na Rússia, a elite gaúcha achou mais prudente ceder os anéis do que correr o risco de perder os dedos. Atenderam às reivindicações, estabelecendo localmente a jornada diária de oito horas, a proibição do trabalho infantil, a licença-maternidade e a indenização para acidentes trabalhistas.
Alguns anos depois, Espertirina mudou-se para o Rio de Janeiro, junto com sua irmã, Dulcina, e o cunhado, Djalma Fetterman. Casou-se com Artur Fabião Carneiro e foi para São Paulo, travando contato com o líder anarquista Edgard Leuenroth e integrando-se ao movimento operário da cidade. Retornou posteriormente a Porto Alegre, onde faleceu em 22 de dezembro de 1942, aos 40 anos, durante seu primeiro parto. O episódio de sua atuação na Guerra dos Braços Cruzados virou tema da canção "O Buquê de Espertirina", gravada pelo rapper GOG com a participação da escritora Raquel Trindade.
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