George Orwell e a demonização do comunismo


Cenas dos filmes "A Revolução dos Bichos" (animação de 1954) e "1984" (longa-metragem de 1956), adaptações para o cinema dos livros homônimos do escritor inglês George Orwell (1903-1950).

Os filmes foram produzidos no Reino Unido como parte um projeto financiado e coordenado pelo governo dos Estados Unidos, dirigido pela Diretoria de Estratégia Psicológica da Agência Central de Inteligência, a CIA. Após a morte de Orwell, a CIA aproximou-se de sua viúva, Sonia Blair, e conseguiu persuadi-la a ceder os direitos autorais e de reprodução das obras para a agência. A intenção era, de acordo com o presidente da Agência de Informação dos Estados Unidos, fazer "os filmes anticomunistas mais devastadores de todos  os tempos”.

Os filmes são testemunhos não apenas do fenômeno do forte envolvimento da CIA na produção cultural da Guerra Fria, visando influenciar narrativas e percepções de mundo, mas também das distorções produzidas com objetivos proselitistas. O alinhamento político de Orwell é objeto de muita controvérsia. O escritor já se definiu como "anarquista conservador", mas também afirmava se inspirar no que chamava de "socialismo democrático", malgrado seu patente anticomunismo. Orwell parecia se filiar ao progressismo antimarxista, influenciado pelos valores do liberalismo e alheio à ideia da centralidade da luta de classes. Durante a Guerra Fria, a CIA buscou promover as ideias da "esquerda antimarxista" como uma forma de frear a adesão de intelectuais às ideologias anticapitalistas, numa época de ascensão do ideário comunista. O "progressismo antimarxista" serviria como um meio de se criar uma ilusão de oposição antissoviética, manipulável, inofensiva aos interesses do capital e favorável ao "estilo de vida americano".

Para enfatizar o sentimento anticomunista e antissoviético, a CIA modificou diversos trechos e o final das obras de Orwell nas adaptações para o cinema, removendo ou amenizando as críticas feitas ao capitalismo e, ao mesmo tempo, enfatizando as críticas ao "totalitarismo" soviético e referências à Revolução Russa como uma "traição dos ideais revolucionários".

Em "A Revolução dos Bichos", a perversidade, cinismo e hipocrisia atribuídos aos porcos, representantes dos soviéticos, são ressaltados, ao passo que os personagens humanos que simbolizam o capitalismo tem seus traços de tirania atenuados. Trechos cruciais do livro, voltados à caracterização da crueldade capitalista — como a violenta tentativa dos humanos de debelar a rebelião dos bichos, ou o castigo imposto aos animais por cantarem o hino revolucionário —, foram removidos. A mudança mais explícita se encontra no final do filme. No livro de Orwell, os animais, do lado de fora da janela, olham para porcos e homens sem conseguir distinguir uns dos outros — uma alegoria da ideia de que não há distinção entre velhos e novos "tiranos", capitalistas ou comunistas. No filme, os humanos não estão presentes. A narrativa é encerrada em tom melancólico, mostrando apenas uma confraternização dos porcos — simbolizando a "corrupção dos comunistas" — esbaldando-se com os frutos da exploração sobre os outros animais.

De forma semelhante, "1984" — igualmente uma obra que se pretendia crítica de toda sorte de "totalitarismo" — passou por várias modificações no longa-metragem de 1956 para minimizar possíveis identificações entre as referências do livro e o capitalismo. A cena das bombas atômicas explodindo evoca o "belicismo soviético", ignorando a referência aos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki. Nos cartazes com a figura do "Grande Irmão", buscou-se traçar a semelhança com as artes gráficas soviéticas e os retratos de Josef Stalin. O uso da palavra "camarada" é exagerado, ao passo que a moeda de Oceânia, originalmente uma referência ao dólar e ao imperialismo estadunidense, foi substituída no filme por libras esterlinas, a moeda inglesa.

"1984" também ignora as comparações entre os Ingsoc e os comunistas que O'Brien faz no livro, mas enfatiza o julgamento-espetáculo em um estereotipado "estilo soviético" dos traidores Rutherford e Jones, que confessam sua culpa antes de serem executados. O fim da obra também é modificado, substituindo a  narrativa de Winston abandonando Julia e aprendendo a amar o Grande Irmão por uma versão menos "derrotista", onde o protagonista mantém vivo seu espírito de liberdade e a percepção da perversidade do sistema. A ironia maior, entretanto, é certamente o fato de que um livro que alertava para os males de um governo "totalitário" e distópico, que buscava manipular a percepção da realidade dos seus cidadãos, tenha se transformado efetivamente em uma peça de propaganda financiada por uma agência de inteligência governamental, cujo objetivo é exatamente manipular a percepção da realidade dos seus cidadãos.



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